27 de dezembro de 2017

Carlos Semedo
2017 – UM BALANÇO

Vivemos dias cheios de acontecimentos, preenchidos de agenda, de urgências, emergências, mas apesar dessa torrente, ao chegar ao final do dia, que histórias temos para contar, que narrativas maravilhosas podemos encetar? Há uns anos ouvi esta indagação numa conferência de José Tolentino Mendonça. As palavras dele foram, de certeza, mais depuradas e certeiras, mas o sentido era próximo deste que procurei expressar. O que é válido para os dias, sê-lo-á para as semanas e para os anos. Afinal, o que queremos fazer da nossa vida?
Quando chegamos a Dezembro e o calendário vai dar um salto esfuziantemente celebrado por muitos, parece impor-se um impulso na direcção do balanço. Esta contabilidade leva-me, este ano, a um olhar para os espectáculos que mais me marcaram, neste labor comunitário de abrir janelas e portas no mundo das artes. Todos têm em comum o facto de se terem realizado em Castelo Branco, esse mosaico cultural à procura de identidade (s).
Em Janeiro, na mesma semana, dois momentos espantosos por razões diferenciadas. Ricardo Minasi, uma quase lenda do violino histórico tocou no auditório do Centro de Cultura Contemporânea e fez uma síntese do virtuosismo técnico e artístico, com uma sensibilidade arrepiante. Um concerto inesquecível. In Shell Side é a última criação de Nélia Pinheiro com a Companhia de Dança Contemporânea de Évora e impressionou-me pela sua beleza enigmática. Uma peça que pede ao público respostas íntimas e talvez intimidatórias a partir do questionamento interior da autora.
Zero, o octeto liderado pelo saxofonista João Guimarães fez um dos melhores concertos de Jazz do ano. Excelentes composições, músicos jovens de grande qualidade e uma energia mar-cante. Se grande parte do nosso público não vivesse encandeado com luzes muitas vezes fugazes, um projecto como este andaria por todo o lado para deleite de ouvintes. Foi em Fevereiro, no Cine-Teatro Avenida.
António Romão é um artista à procura de uma outra luz. Em Luz Negra, encara-nos a partir dos seus fantasmas e convida ao entendimento da depuração e da relação binária, uma falsa dicotomia que me obrigou a procurar os campos intermédios, os segredos que Romão tem para partilhar connosco. Foi na Sala da Nora, em Março, que um dos mais enigmáticos artistas plásticos a residir em Castelo Branco, mostrou os seus últimos trabalhos.
O fado nunca foi um mundo no qual me sentisse confortável. A fragilidade é minha e nas várias tentativas que fui fazendo ao longo da vida, para me aproximar, falhou sempre a dimensão empática, aquela sintonia emocional, que nos torna parte do objecto de audição. Tudo mudou depois deste concerto. Ricardo Ribeiro foi uma epifania que me aconteceu, lentamente, ao longo de um dos melhores concertos do ano. Não se tratou de uma revelação súbita, avassaladora. Foi mesmo uma sedução lenta, terna e, simultaneamente, selvagem. Navegar nas águas do fado como Ricardo Ribeiro faz, convoca a melhor tradição e a mais determinada coragem de pisar o risco, ultrapassar os limites, não ter medo do peso dessas duas sílabas, Fado. Nunca mais fui o mesmo, depois desta experiência. Aconteceu em Março, mais uma vez no Cine-Teatro Avenida.
No final desse mesmo mês, mais dois momentos marcantes. A Companhia Nacional de Bailado, num programa brilhantemente escolhido por Luísa Taveira, apresentou-se na nossa cidade com um nível excelente. Na memória ficaram Serenade, Herman Schmerman, um dueto extraordinário, e 5 Tangos. No dia seguinte, na magnífica acústica do Centro de Cultura Contemporânea, foi a vez de Ana Quintans, essa soprano fenomenal se apresentar pela primeira vez na região, com o Concerto di Cavalieri, dirigido por Marcelo di Lisa. Dois concertos em Portugal, com este programa, o primeiro em Castelo Branco e, depois, Lisboa.
Ao longo dos últimos anos, tenho assistido, privilegiadamente, à evolução do João Roiz Ensemble, grupo que assume uma programação aliciante, muito bem desenhada e que vai conquistando cada vez mais público para os seus concertos. Neste balanço de 2017, não poderia deixar de referir que foi, talvez, o ano no qual mais riscos assumiram nas suas propostas de repertório, fazendo-o com sucesso. Foi também o ano no qual Saul Picado, o jovem pianista que fez uma parte do seu percurso formativo na cidade, regressou para realizar um excelente recital em duo com a violinista Carla Santos.
Entre Abril e Maio, a Casa Amarela (antigos CTT), Galeria Municipal desvendou-nos o universo de Martins Correia, o escultor do Amato Lusitano que se encontra no coração da cidade. Uma exposição comissariada por Maria João Fernandes e montada pela equipa do Cine-Teatro Avenida e que se constituiu como um momento de conciliação com a obra extraordinária deste artista nascido na Golegã.
António Zambujo dispensa apresentações, mas a sua visitação ao universo de Chico Buarque, vincou mais uma vez as qualidades deste alentejano. Uma voz inconfundível, uma sensibilidade construída no detalhe, nas gradações e um sentido de equilíbrio do espectáculo que me levam a destacar a sua mais recente passagem pela cidade.
Duelo, a partir de Bernardo Santareno, espectáculo da Útero Associação, criado por Miguel Moreira, é espantoso. O espanto de podermos viver aqueles momentos na partilha do espaço, dos corpos nus, que nós vestimos com a nossa pele. A interpelação que Moreira e os seus poderosos companheiros nos faz, perdura ainda no meu corpo.
Em Junho, os Artistas Unidos, trouxeram Jardim Zoológico de Vidro, de Tennessee Williams e foi uma oportunidade de privarmos com um texto que nos acorda para as lições que o passado tem para nos dar e a nossa dificuldade em aprendê-las. Excelente encenação e interpretação, que me ficou na memória. Li, entretanto, o texto e as imagens desta encenação ficaram bem inscritas na minha memória.
Nos mês seguinte, mais dois momentos marcantes do ano: as sessões de Sábados Contados, em diversos espaços públicos da cidade, organizadas numa parceria Câmara Municipal de Castelo Branco e Pé de Pano Associação e o concerto por Salvador Sobral, no refluxo da sua vitória no Festival da Canção. Um músico que confirmou as suas qualidades, numa sala que esgotou em pouco mais de uma hora. Ironia da relação do público com as propostas culturais, se o concerto se tivesse realizado uns meses antes, teria na plateia talvez umas 100 pessoas, em vez das 700, exuberantes na sua rendição ao jovem Sobral.
Mas Julho foi também mês de se fazer história. Num projecto com uma forte base local, pudemos ouvir o Requiem, de Domingos Bomtempo, dirigido por João Paulo Janeiro, feito pela primeira vez, em tempo moderno, com instrumentos históricos, um espectáculo recentemente repetido na Assembleia da República. Aqui é Sempre Um Outro Lugar foi apresentado pela Terceira Pessoa, com a interpretação de um grupo de jovens da nossa comunidade, num dos melhores espectáculos construídos pelo Nuno Leão e Ana Gil.
No final do mês, no anfiteatro da Praça Manuel Cargaleiro, junto ao Museu do mestre, outro mestre iluminou as Noites Azuladas, com um concerto a solo que ficará na memória de quem ali esteve. João Paulo Esteves da Silva contruiu, desconstruiu e, no final, ficou a vontade do silêncio.
No plano das exposições, o Centro de Cultura Contemporânea inaugurou Retrospectiva, uma fabulosa viagem pelo trabalho de Cristina Rodrigues e na Casa Amarela, Nadir Afonso, desde os anos quarenta até às últimas obras, oportunidade rara para conhecer um outro Nadir.
Aproximamo-nos do fim do ano. Logo no início de Outubro, o guitarrista Carlos Barbosa-Lima deu início, no Museu Francisco Tavares Proença Júnior, à sua digressão comemorativa dos sessenta anos de carreira e presenteou-nos com uma lição de vitalidade e qualidade artística. Como acontece com muitos outros artistas, orientou Master Class para alunos do Conservatório e da ESART.
Em Sopro, Sofia Neuparth, iluminou-nos o caminho para compreendermos o corpo como campo de batalha da vida, através de uma dança que reconstrói gramáticas. Patxi Andión mostrou-nos porque Zeca Afonso é universal. Maria da Luz (Váatão Teatro) convidou-nos para conhecermos Maria Gomes, numa interpretação magistral.
Perante um Cine-Teatro Avenida em êxtase, os Moonspell fizeram história com uma potência esmagadora e marcaram com fogo a memória do público que quase encheu o auditório.
Termino com uma referência à exposição de fotografia Metalúrgica, ainda patente no Museu Francisco Tavares Proença Júnior. Inaugurou em Dezembro e tem como base, um extraordinário registo de António Duarte Costa, que nos mostra a laboração desta unidade industrial, no final dos anos cinquenta do séc. XX.

27/12/2017
 

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