Antonieta Garcia
EUROPEUS E EUROPEUS
A Europa, velha senhora, ainda põe ao peito o lema da sabedoria, da solidariedade e da visão universalista, valores que pautaram a sua história?
Convenhamos que os europeus construíram, ao longo dos tempos, uma ética e uma cultura preciosas. Lutas demenciais também existiram. A sua história conta, sem dúvida, com períodos de conflitos, perseguições, ilusões tresmalhadas… Perto de nós, não pode esquecer-se o reinado da “banalidade do mal”, como qualificou Hannah Arendt; ódios e muita indiferença emergiram, quando o “silêncio” de Deus se projetou no silêncio dos homens, e confundiu, extinguiu o sentimento de culpabilidade.
Todavia, mesmo em épocas difíceis, quando o horror pontificou, sempre se levantaram vozes de cultores de justiça e da dignidade humanas, a alvitrar a edificação de um mundo de igualdade, liberdade e fraternidade... A Europa abandonou aspi- rações? Permitiu que sonhos decaíssem? E não a vimos erguer-se como União Europeia, berço de solidariedade da civilização ocidental e senhora da esperança?
A sua criação representou a concretização de um sonho. Valorizou a dignidade do ser humano, defende o respeito pela vida privada, a liberdade de pensamento, de religião, de reunião, de expressão e de informação… a democracia representativa. Os Direitos Humanos estão protegidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da U.E.
Abraça, assim, leituras diversas do mundo, heterodoxias em convívio. Perfeito! E todavia…
O senhor Orbán é, desde 2010, primeiro-ministro da Hungria. Líder de um partido conservador de direita, conseguiu que a sua proposta para alargar o período de emergência, fosse aprovada pelo Parlamento de Budapeste, alegando a necessidade de travar a pandemia do coronavírus. Com a legislação criada, poderá governar por decreto, por tempo indeterminado. Membros do Parlamento europeu reagiram. Permite-se que a Democracia entre de folga, num país europeu?
E a Solidariedade? Cidadãos da Europa conhecem a narrativa! O holandês, senhor Dijsselbloem ficou tristemente célebre, quando se referiu aos estados do sul: “Não posso gastar o meu dinheiro em vinho e mulheres e depois pedir ajuda”. Afastaram-no do Parlamento Europeu? Claro que não. Apresentou uma desculpa esfarrapada; sorridente e pouco calvinista a sério, desculpou-se: não fora sua intenção atacar nenhum país. Pedia antes responsabilidade a todos; a história do “vinho e das mulheres” era, digamos, quase autobiográfica… Mas o sucessor foi mais longe. Wopke Hoekstra pediu, no contexto de pandemia feroz, uma auditoria às contas espanholas. Reagiu, vigorosamente, António Costa, o primeiro ministro português. E lá veio Hoekstra a admitir que não tinha sido feliz na mensagem... Solidariedade?
Ainda no contexto da crise pandémica, a Holanda, a Áustria, a Dinamarca e a Suécia declararam-se contra a proposta franco-alemã. Foi seu porta voz o chanceler austríaco, Sebastian Kurz: “Estamos prontos para ajudar os países mais afetados, mas com empréstimos, e desde que a “contribuição não aumente de maneira excessiva”. Denominam-nos “países frugais”. Dicionários definem frugal como aquele que se contenta com pouco para a sua alimentação; vive de coisas comuns, é sóbrio, moderado, simples… Mas tudo isto é muito subjetivo, as asserções multiplicam-se. Desde sempre. A frugalidade era regra de ouro de sacerdotes e dos conventos. E, todavia… Haverá países “frugais”? Países “gastadores”? Cabem estas qualificações no plano ambicioso da construção de uma União Europeia forte? Certo é que o quarteto tem mostrado resistência a uma maior solidariedade para com os países do Sul da Europa.
E estas questões lembram a história narrada por George Steiner, em Ideia da Europa. Em 1934, coube a Thomas Mann a redação do obituário de um indivíduo cuja obra, Sammi Fisher, editor, conhecia. Referiu:
- Não é europeu.
- Não é europeu? Como assim, Senhor Fischer?
- Ele não percebe nada das grandes ideias humanistas.
A cultura europeia pode sintetizar-se, como fez Fischer. Salvar a Europa, a liberdade, a solidariedade e a democracia, implica que burocratas gestores não empobreçam o seu espírito. Nas últimas décadas, a demanda da paz e da igualdade entre europeus, tem sido eficaz? Os países “frugais” são intoleráveis. Que é da Europa humanista, da solidariedade europeia?