Lopes Marcelo
Crise global. E agora?
A actual fase de descompressão da crise sanitária/Covid 19, cria algum espaço para a reflexão que contemple a ponderação dos factores mais preponderantes e as variáveis essenciais de um certo balanço do passado e, sobretudo, de prospecção do futuro.
Entendo, com a minha formação de economista, que vale a pena tentar uma abordagem rigorosa da crise económica, financeira e social, desde que assumida em linguagem aberta e clara.
A economia dos dois último séculos, depois do advento da revolução industrial, desenvolveu-se a um ritmo cada vez mais acelerado, marcado por inovações tecnológicas e aumentos sucessivos de produtividade. Foi o tão propalado progresso, capturado pelo sistema capitalista, ou seja movido pela progressiva e ávida acumulação de capital. Falemos claro: numa primeira fase tratou-se de aumentar o ritmo de produção de mercadorias e de diversificação de produtos, pois acreditava-se que a dinâmica do mercado tinha soluções para todos os problemas e que era imenso , mesmo, ilimitado. O esquema base era o seguinte: com as mercadorias vendidas (M1), fazia-se dinheiro (D1). Este dinheiro era aplicado em produzir novas mercadorias (M2) que eram de novo vendidas, obtendo-se novo montante de dinheiro (D2). E o motor das transações, foi sempre assegurar que M2 fosse maiorM1 e que D2fosse maior que D1 e, assim sucessivamente, em renovados ciclos de produção-venda-produção...O nível crescente de consumo de mercadorias, bens e serviços por cada vez maior número de pessoas criou a ilusão da soberania do consumidor, da massificação do consumo e que o mercado assegurava uma certa igualdade como base de realização e felicidade das pessoas.
Voltemos à questão da acumulação do capital. Com o desenvolvimento da Banca e a actuação de marketing agressivo dos bancos quer, inicialmente com os valores atractivos das taxas de juro, quer por outros mecanismo de captação dos depósitos, a Banca no seu conjunto foi acumulando e criando moeda, ou seja capital que tornava disponível para ser aplicado na produção de mais e mais mercadorias, bens e serviços. É o que se designa por criação de moeda escritural. Pode parecer complicado, mas não é. Se não, vejamos a exemplificação.
De facto, um banco ao receber um de depósito por exemplo de mil Euros, não é obrigado a manter esse dinheiro parado, antes faz tudo para o injectar na economia através de empréstimos e cobrando juros e comissões. Ora desses mil Euros, o banco só tem de conservar uma pequena parte que corresponde à taxa de reserva legal. Para a exemplificação ser mais clara, tomemos por base uma taxa de reserva de 10%. Assim, do depósito inicial de cada mil Euros, o banco mantém em reserva cem Euros e empresta novecentos que vão ser investidos na produção de mercadorias e bens e serviços que uma vez vendidos originam receita em dinheiro que volta a ser depositado num banco ( o mesmo ou outro qualquer, pois o sistema bancário actua como um todo). Desse novo depósito de novecentos Euros, o banco volta a reservar 10% ( noventa euros) e volta a emprestar a diferença, ou seja oitocentos e dez Euros e, assim, sucessivamente. Não querendo maçar o leitor com números, sempre concretizo que ao fim se cinco ciclos de depósitos, o valor da moeda criada e em circulação já ultrapassa os quatro mil Euros (4.095). E, no fim de dezenas operações de depósitos o valor total da moeda criada se aproxima dos dez mil Euros por cada mil do depósito inicial.
Poderão perguntar alguns leitores, mas o que tem isto a ver com as crises económicas?.Tem muito, pois que esta engrenagem de criação e concentração de dinheiro, nem sempre corresponde à criação de riqueza de bens e serviços úteis e, muito menos, a uma distribuição equitativa e justa entre os vários factores produtivos, designadamente a mão-de-obra, pois não coloca as pessoas e o equilíbrio ecológico e sustentável da sociedade, no centro e como preocupação fundamental.
Quanto à natureza da riqueza criada, ainda a economia vai algo equilibrada enquanto são produzidas e distribuídas mercadorias, bens e serviços úteis para satisfazerem necessidades reais dos consumidores, já que o respectivo controlo e avaliação de qualidade é mais possível e mais evidente. Mas, com a engrenagem da acumulação de capital, o dinheiro foi-se desligando progressivamente das mercadorias, bens e serviços úteis e tornou-se ele mesmo mercadoria disputada e transacionada em mercados nada transparentes e sem controlo económico, social ou fiscal. E, para além da referida criação de moeda escritural, assim designada porque pelo menos constava da escrita e contabilidade dos bancos e das empresas podendo ser escrutinada e até controlada, passou-se para várias formas de capital sem existência material, para a designada contabilidade criativa, para operações financeiras desligadas da economia real com base em registos apenas digitais e até só virtuais, cada vez mais voláteis, desligados da economia real e da vida pessoas. E o descontrolo financeiro desencadeou-se, a crise globalizou-se. Voltaremos a tão delicado tema.