José Dias Pires
OS COBRADORES DE FAVORES, A SUBSERVIÊNCIA E A GRAMÁTICA DO BALIDO
Há pessoas que apenas dão para receber e que só fazem favores para pedir.
Tais dádivas, favores ou ajudas transformam-se, quase sempre, numa mercadoria transacionável para quem tal pratica, mas que não o diz abertamente, antes pelo contrário: fazem com que esse gesto interesseiro pareça um ato de generosidade. Contudo, quando menos o espera, o favorecido vê-se confrontado com o que lhe fizeram e sujeita-se a imposições que não tinha previamente assumido.
Os cobradores de favores escondem-se sempre por detrás de um falso conceito de gratidão, e pensam que todos os favores prestados têm sempre implícito o compromisso da devolução sem qualquer preocupação de saber se aquele a quem cobram pensa da mesma maneira.
Na verdade, o favor, a ajuda aparentemente desinteressada, não era um favor, era uma armadilha que o favorecedor ativará quando entender conveniente, tratando-a como uma espécie de contrato que a outra parte nunca assinou.
É no contexto político que, infelizmente, continua a haver quem aja como se tivesse anotados todos os favores que já fez. O pior é que o cobram como e quando querem, mesmo que nunca tenha sido estabelecido um acordo explícito com quem se favoreceu ou ajudou.
Quantas vezes quem se obriga a pagá-lo o faz perante abusos e violências (mesmo que apenas morais) de quem o cobra?
Os cobradores de favores têm anotado tudo o que fizeram pelos outros, algumas vezes com todos os detalhes das ocasiões em que vários favores não foram retribuídos.
Diz o povo que um favor, para ser favor, deve contar com a ingratidão. No essencial, essa afirmação é completamente válida. Na verdade, o favor é fruto da generosidade, da consciência de que todas as pessoas em estado de necessidade devem receber ajuda daqueles que têm possibilidade de ajudar. A retribuição de qualquer favor (mesmo que apenas simbólica) é a satisfação sentida por quem o faz.
Quando aquele que dá o usa como instrumento coercivo e de poder, retira à sua ação o melhor sentido e determina o aparecimento da subserviência e da gramática do balido.
Disse Martin Luther King, “As nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em silêncio acerca das coisas que importam”.
Falemos, pois. Podia falar de preconceito, de hipocrisia ou de obtusidade. Contudo, prefiro falar do servilismo, da subserviência de alguns que aceitam caminhar de espinha dobrada e se transformam em ovelhas repetidoras do coro acéfalo do rebanho.
O livre arbítrio outorga-lhes o direito da escolha que, no seu caso, é a preferência por uma vida obedecida sem quês nem porquês.
Desde que nos tornámos racionais, somos vítimas e culpados das nossas escolhas, especialmente quando não separamos o bom do mau, o certo do errado e a verdade da mentira.
Esta falta de discernimento é meio caminho andado para o servilismo, que alguns gostam de atenuar designando-o por obediência, porque lhes sabe mal a palavra que maior prazer lhes dá: subserviência.
A subserviência é tão vil quanto nociva, pois promove, em quem a aceita, a incapacidade da cidadania e a deformação do caráter, que transforma a liberdade em aceitação acéfala de todas as formas de domínio e controlo.
Quão certo estava François Rabelais quando escreveu que, “o medo e a subserviência pervertem a natureza humana.”
A subserviência eleva o ser humano a um tal nível de degradação moral, que leva os subservientes a achar natural sê-lo, e a ficarem apavorados quando confrontados com pessoas que o não são.
Na verdade, onde existe o servilismo não há liberdade. Haverá quem diga que o subserviente foi livre na sua escolha. Sim, “foi livre”. Irónica liberdade que acompanha uma impetuosa vontade de subir na vida, de adquirir vantagens (vendendo a alma ao diabo e a liberdade aos caciques). Caráter? Dignidade? Estas são palavras desconhecidas impossíveis de conjugar com verbos auxiliares: ter caráter e ser digno não cabem na gramática dos caciques e estão vedados aos subservientes, porque podem ser más referências para os comportamentos que o servilismo implica: (má) influência política, compadrio, favor e cunha (estas sim, palavras preciosas na gramática do balido).
Quem aceita pertencer ao rebanho dos que não se importam de ser amouchados, tosquiados, dobrados e sempre com um sorriso conivente e palavras bajuladoras para quem os sujeita na cobrança de favores, vive de balidos resignados que repetem a voz do dono, incapazes de subverter os conteúdos.
«Obrigado, obrigado, por tudo o que fez por mim», é o que repetem à exaustão, porque deixaram de acreditar na sua resiliência, na sua liberdade, na sua força, no seu amor próprio e no respeito por si.
“És livre para fazer as tuas escolhas, mas és prisioneiro das consequências”, escreveu Pablo Neruda.
Melhor que ninguém ele sabia que a ideologia tem raízes e é, antes da ação, invisível. A ideologia vai fundo na terra e depois cresce até à luz da vida. A ideologia tem matizes de uma só cor e não pode ser imprevisível.
A ideologia tem mundo, e só depois floresce para ser comprometida. Nunca bateu à porta dos subservientes e, felizmente, não cabe na boca dos caciques.