Edição nº 1843 - 8 de maio de 2024

João Carlos Antunes
Apontamentos da Semana...

ONTEM, ANDAVA EU HORTANDO, quando ouvi o cuco cantar. E lembrei-me do Rogério. O Rogério era um vizinho da minha aldeia, com um evidente défice cognitivo, uma das pessoas mais estimadas e acarinhadas pela comunidade. Conhecia muito bem o Rogério porque era da minha idade, andou comigo na escola, onde se não aprendeu o ABC e a tabuada, de certeza que socializou. Nessa época ainda não havia bullying, ou se porventura houvesse era suave apenas se traduzia nalguma alcunha menos agradável. Mas nem disso me lembro. Na minha geração as alcunhas eram quase todas de jogadores de futebol, do futebol que se dividia entre o Benfica e o Sporting, que se jogava num campo inclinado e com afloramentos rochosos, piçarras, que se rodeavam como se fossem adversários. Era o Torres, o Pacheco, o Lourenço, o Serena, o Águas, o Travassos e outros, tudo nomes de jogadores. Eu não tinha alcunha de jogador porque não me distinguia particularmente na arte de domínio da bola. E como não era o dono da bola, e quero acreditar que por ter óculos, era o último a ser escolhido na constituição da equipa. O Rogério também não tinha alcunha, mas se tivesse, teria de ser alguma coisa relacionada com jornal da aldeia. Qualquer acontecimento, particularmente falecimento de alguém, ele circulava pelas ruas da aldeia a anunciá-lo a quem encontrasse. No sino da igreja, tocavam-se os sinais de falecimento e as pessoas se o encontrassem, perguntavam-lhe sobre quem tinha morrido. Na certeza de que mais credível informação, não havia.
E ontem, quando ouvi o cuco lembrei-me do Rogério. Porque ele era sempre o primeiro a ouvir o cuco e anunciava-o aos quatro ventos. A caminho e no regresso de cuidar das suas cabrinhas, passava sempre à minha porta, ó Rosária, ó Rosária, chamava pela minha mãe, já ouvi o cuco! A minha mãe que não se atrevesse a dizer que ela também já o tinha ouvido, que ficaria logo ali parado, de olhar fixo e queixo caído, que todos sabiam ser nele sinal físico de tristeza e frustração. A importância do canto do cuco numa comunidade rural, residia no facto de a chegada do cuco simbolizar o início de um novo ciclo, a chegada da primavera, da renovação da vida, de dias mais longos. E, de passagem, diga-se que o cantar do cuco marca o fim do tempo dos tortulhos, uma verdadeira iguaria da gastronomia regional.
O Rogério podia ter défice cognitivo e não saber o alfabeto e a tabuada, mas era o depositário dos saberes e práticas ancestrais. Quando éramos moços, lembro da mitologia do maio. No dia primeiro de maio, cada um ia apanhar ramos de rosmaninho florido, ou rosmano como dizíamos, e com eles tapávamos os buracos da frontaria da casa, para que o maio não entrasse e fosse comer os chouriços e fazer outras malvadezas. Os anos passaram, os mais novos saíram para outras paragens, França, Lisboa… Os mais velhos deixaram de matar o porquinho para fazer chouriços e o rosmaninho deixou de ser necessário para afastar o maio. Mas havia alguém que teimava em não deixar morrer a tradição. Em cada dia primeiro de maio, o Rogério, com uma grande braçada de rosmaninho colhido lá para os lados da Azinheira, ia colocando um raminho em cada casa, na fechadura da porta ou no buraco da drenagem da janela. E foi assim que na minha casa, nunca o maio entrou.
Foi de tudo isto que me lembrei, quando ontem na horta ouvi o cuco. É o meu contributo modesto para a memória de um homem simples, bom e acarinhado pela comunidade onde viveu feliz.

08/05/2024
 

Em Agenda

 
29/05 a 12/10
Castanheira Retrospetiva Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco

Gala Troféu Gazeta Atletismo 2023

Castelo Branco nos Açores

Video