Edição nº 1877 - 8 de janeiro de 2025

José Dias Pires
MEMORIAIS DE SOBREVIVÊNCIA

Agora que entraste em 2025, olha para a parede nua: de supetão, as imagens guardadas para esquecimento futuro, começarão a projetar-se na caliça acinzentada pelos fungos da humidade centenária.
Garante que aos pés da cama ainda se mantém a caixa com a tua coleção dos Memoriais de Sobrevivência.
Insistentes, na tela cinzenta e manchada, começarão a correr, como num carreiro de formigas, as palavras que a tua vontade não deseja recordar.
MEMORIAL DAS CERIMÓNIAS E ATAVIOS: Apesar de contrariado, deixaste-te ataviar de seda, veludo e verniz. Permitiste que a brilhantina acentuasse o caracol de estilo sobre a testa e no pescoço pingasse um laço vermelho a combinar com os botões forrados do colete azul escuro.
Depois, ficaste sentado no banco do estúdio do fotógrafo. Seguiste as instruções para acertar o canto dos olhos e o pescoço empertigado, para não dizer contorcido, com o halo de luz que espreitava entre os dois refletores que ajudaram a apagar o risco de sombra entre o queixo e as orelhas.
Não te mexeste! Mantiveste-te direito! Assim!
Mesmo sentindo-te um títere mal-enjorcado e te apetecesse escapar dali, esperaste que a tua mãe sorrisse e a tua avó limpasse a lágrima fugidia.
Não te importaste que o teu pai e o teu avô tivessem ido ao café antecipar, com medronheira, a obrigação da missa da tua comunhão solene.
Descruzaste as pernas. Dobraste-te e observaste o brilho dos teus sapatos a bambolear sem tocar o chão. Arriscaste um pequeno salto e ficaste em pé. Ajeitaste as meias de renda que te chegavam à fronteira dos calções.
Olhaste para os dois sorrisos embevecidos e, com um menear de cabeça, perguntaste: «Vamos?»
Estendeste a mão direita para a tua mãe e, de mão dada, deixaste que te levasse escadas abaixo até à rua.
Para o deserto futuro que havia de vir, guardaste a fotografia no fundo da caixa e, para incumprimento, prometeste a ti mesmo não voltar ao passado que ali guardavas.
“Coisas pequenas”, obrigaste-te a pensar e olhaste-te ao espelho para compreenderes os porquês da pequenez sempre te ter incomodado.
MEMORIAL DO INCÓMODO DA PEQUENEZ: Continuas pequeno, mas, por isso mesmo, não te incomodes se os sapatos domingueiros, de sola escorregadia, matraquearem a calçada polida que leva a nenhures. Não temas que a tua avó caminhe a pisar-te a sombra, e lembra-te que ela guardará na carteira a prenda reservada para o final das cerimónias. Sorri, como se a tua mãe te endireitasse o laço. Encolhe os ombros, se disser, outra vez, que já estás desasado.
Ouve a música desafinada do chinelar dos sapatos altos a que a mãe da tua mãe nunca se habituou. Ela antecede o que ela te vai murmurar no teu ouvido: «Lembra-te, filho, no melhor pano cai a nódoa, mas nem todo o sabão a limpa.»
Tu sabes: na tua vida, todos os Pilatos usaram saponárias perfumadas. Apesar dos sabonetes, as mãos cheirar-lhes-iam, sempre, a água de azeitonas.
MEMORIAL DO DILUENTE LUMINOSO: Não obstante odiares ovos verdes, aprendeste com a besuntada sabedoria de todos os acólitos: «Os ovos verdes devem ter muito vinagre, como o demónio.»
Por isso, não te deixes vencer pela textura ou pelo paladar e, muito principalmente, pelo cheiro que se entranha na pele dos dedos com um pivete a umbigo mal lavado e seboso. Aprende a manter a taça de branco fresco sempre bem acesa antes de dizeres, como o cónego Guimarães: «Com esta vela, mordem-se com mais ganas!» «Quem?!»
Anota que, para os celebrantes das sessões solenes, os pontos altos das manhãs cerimoniais são as portas que as encerram e entreabrem o sono da tarde retemperador de uma preenchida refeição: ovos verdes, frango panado e pastéis de bacalhau, pois o resto é pouco mais que canja.
Abomina os oficiais, mas aprende a fingir o contrário. Apazigua o sacrifício do gostar fingido e descobre a engenhosa forma de aguentar as suas presenças nos palanques.
Sobrepõe o clarão das luminárias às figuras redondas e atarracadas de quem preside e, paulatinamente, fá-los desaparecer da liturgia.
Goza o clímax desta imaginação redutora e transforma-a em tua companheira à medida que cresceres através da chama de um fósforo; do fumo acinzentado de um cigarro (fumarás, pois) e do esplendor das centelhas que oferece o reflexo de um pedaço de vidro.
Utiliza tudo o que ofusque os outros para os fazeres desaparecer do próximo horizonte.
Falhado isto tudo, recorre à frase gestual: «O portado aberto é a largueza da rua!»
Permite que a magia da tua imaginação redutora te transforme numa borracha social, num apagador de adversários ou, no mínimo, de “coisas incomodativas”.
MEMORIAL DAS VOCAÇÕES EXCLUÍDAS: Deixa-te levar até ao Primeiro Princípio da Conveniência: preferir o menos mal macio à rugosa possibilidade do muito melhor.
Troca a hipótese colegial de todos os latins e benfeitorias, onde se torna provável encontrar novos celebrantes dos pequenos serviços que são a antecâmara burocrática, efetiva, aceitável e digna de algum reconhecimento comunitário (melhor pago, até, que o exercício público da palavra) onde aprenderás o valor e o estatuto do mais insignificante objeto - o salpico da saliva acumulada no canto da boca.
Faz-te bancário, se a chegada a uma repartição de finanças - onde os atentos descobrem o poder subterrâneo do fisco - se transformar numa segunda vocação excluída e mergulha no conhecimento e domínio do poder de todos os papéis-moedas e a atração tácita e tática do favor e do favorecimento - o Memorial de Todos os Poderes, também descrito como o Memorial das Preposições Incontornáveis.
MEMORIAL DE TODOS OS PODERES, também descrito como MEMORIAL DAS PREPOSIÇÕES INCONTORNÁVEIS: A um não devas; Ante dois não te comprometas; Após três tentativas falhadas, desiste; Até quatro boatos não há notícia; Concede cinco favores a um e tens servidor para sempre; Contra seis fracos unidos não te armes em forte; De sete dias nunca faças um mês; Desde oito horas se ganha o dia; Em nove meses se esvaziam barrigas; Ante dez pecadores, finge-te inocente; Para onze interesses diz-te camarada; Perante doze cobardes, mascara-te de magnânimo; Por treze azares dos outros ganha o seguro o ano; Sem catorze dentes não sorrias nem chores; Sob quinze desculpas esconde os erros; Sobre dezasseis vénias ergue-te cacique; Trás dezassete mentiras impiedosas e privadas se constrói a verdade pública.
MEMORIAL DO PATRIMÓNIO IMATERIAL (da Desculpa): Perante as guerras que nos avassalam e as artimanhas de quem as justifica, não há palavras para tanta hipocrisia.

08/01/2025
 

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