Lopes Marcelo
A OFICINA DO TEMPO
Nas últimas semanas vivemos um tempo de muita informação, quer a nível nacional, quer de muitas partes do mundo. A nossa atenção é permanentemente solicitada para celebrações, perplexidades, raiva e sofrimentos.
A nível nacional, hoje Domingo em que me debruço sobre a janela desta crónica, vive-se mais uma festa da democracia. Exerce-se mais uma vez o direito/dever de votar. Sim, porque em democracia a escolha tem que ser renovada. A política não é um fim em própria nem para longo prazo. É, antes, um meio, uma atitude e vontade de escolha para a orientação da vida colectiva.
A nível internacional as perplexidades, a raiva e o sofrimento são marcas de um quotidiano que não podem deixar de nos interpelar e inquietar. Atendendo a que do intrincado e contraditório mosaico de acontecimentos do dia-a-dia não resulta uma linha orientadora para o futuro e que seja apaziguadora da evolução da condição humana, importa ultrapassar tal cortina asfixiante e reflectir sobre as grandes linhas e os valores que a oficina do tempo gerou e que de um modo geral se designa por civilização. Será que as designadas conquistas da civilização se podem considerar por adquiridas e consolidadas? Tudo isto, numa perpectiva optimista de se considerar que dos múltiplos ciclos de avanços e recuos, das sucessivas guerras, do surgimento cíclico de líderes perturbados e perturbadores, tem resultado uma linha de evolução positiva.
A oficina do tempo tem múltiplas dimensões, individual, colectiva e universal que se interinfluenciam, moldando os valores e os comportamentos da condição humana. Os tempos que vivemos parecem revelar uma perspectiva bastante mais pessimista em que o ser humano que tem melhores condições de vida maior parcela de poder se relaciona com os seus semelhantes de forma arrogante e, até, predadora. O olhar sobre o outro ser seu igual em condição humana está impregnado de desconfiança, ódio, raiva e vingança desmedidas.
As religiões que deviam promover o encontro, a partilha, praticar gestos e atitudes de religamento e de celebração da vida, comportam-se tantas vezes como seitas dogmáticas e nacionalistas que perseguem e matam em nome do seu Deus. Fronteiras autoritárias, barreiras económicas e administrativas e, até, de arame farpado ou de muros físicos são interpostos numa estratégia protecionista de nacionalismos e isolacionismos contraditórios com a evolução da civilização humana. Pessoas humanas são tantas vezes meros números nas frias estatísticas das vitórias ou das derrotas.
Verificam-se incoerências e contradições históricas, imoralidades sociais e económicas tão relevantes que desconsideram o valor da pessoa humana de forma gritante. Vivem-se em muitas zonas do mundo tempos de ódio, de perseguição e de guerras por motivos ideológicos, religiosos, nacionalistas ou tribais que não reconhecem os mais básicos direitos humanos, não aceitam nem convivem com a diferença. Parece que nos últimos milhares de anos, pouco ou nada se aprendeu com as rupturas das guerras e dos cataclismos que tão grandes solavancos, retrocessos e sofrimentos causaram à humanidade. As principais inovações tecnológicas são capturadas e usadas nas armas de guerra para maior eficácia nas estratégias de destruição autoritárias e expansionistas. O futuro parece ser apenas possível de um modo muito polarizado. De um lado, o luxo, a riqueza gritante escandalosamente acumulada nas mãos de cada vez menos; e, do outro lado, a grande maioria de pessoas vivendo com dificuldade e muitas expulsas do seu território de origem, movimentos de desenraizados de gritante pobreza, emigrantes forçados. A história já teve épocas de grandes convulsões, mas pouco ou nada se aprendeu em termos de humanidade e de respeito por uma economia sã coerente com os recursos do planeta.
Só a dimensão cultural poderá vir a recentrar a humanidade na matriz dos valores essenciais à vida, à igualdade e à solidariedade.