Joaquim Bispo
A REALIDADE
A minha mãe é alegria. E sabor. Ela junta açúcar num pratinho com requeijão ainda quente que o meu pai acabou de trazer. Delícia! Colhemos figos amarelos a escorrer um pingo de doçura dourada. Regalo! Vamos à fonte buscar água. Fresca! Eu corro à frente. A correr, ninguém ganha à Flecha, a cadela. Corro com ela, feliz. Correr é bom! E andar descalço pelos campos. E nas areias frescas da ribeira. Pela sombra dos amieiros. E estar deitado no meio da erva. Ouvindo os muitos pequenos sons do campo. E sentindo os muitos aromas das plantas. O cheiro a fumo da erva cortada de fresco…
Fumo? Pedro acorda.
Está no escritório. Sentado e com os cotovelos apoiados no tampo da secretária, tinha adormecido por momentos. No cinzeiro, um cigarro queimado até ao filtro. Olha o relógio. Já passa das seis. Arruma alguns papéis que estavam dispersos pela secretária, veste o casaco e sai. Ainda é cedo para ir para casa. Resolve passar pela tabacaria, para comprar o jornal, antes de se sentar na esplanada do fundo da rua. Nada mais repousante num fim de tarde: uma cadeira, um jornal e um café.
Na tabacaria, olha os cabeçalhos de jornais e revistas e decide-se por uma de nome a branco sobre vermelho.
- A Pesquisa, se faz favor!
Paga-a e sai observando a capa. Apresenta o desenho de um cérebro sob um título que promete revelar tudo sobre a fase REM do sono. Cruza maquinalmente o passeio e começa a atravessar a rua sem despegar os olhos da revista. Logo um guinchar estridente lhe assola os ouvidos e o seu olhar já lhe desvenda a origem. A poucos metros, vem um carro de rojo, agarrando-se desesperadamente ao alcatrão. Os olhos do condutor fitam-no aterrorizados, como que a pedirem-lhe o milagre de se desviar, a tempo, da trajetória do carro. O sol refletido nos cromados fere os olhos. Os travões gemendo desfazem-se em chispas de fogo. As pessoas detêm-se de olhos fixos no horror que se desenrola mesmo ali. Sabem que um homem vai ser atropelado e nada fazem. Algo as mantém presas. Há movimentos apenas esboçados. Parece que tudo decorre em grande lentidão. Lentidão apenas aparente. Àquela velocidade, o carro vai esmagar o homem.
Pedro dá um pulo na cama.
À sua frente desenrola-se um acidente do qual ele próprio é o atropelado iminente. Em escassos momentos, porém, o carro que vem ao seu encontro desvanece-se, deixando em seu lugar apenas os ferros graciosamente enrolados da sua acolhedora cama.
Pedro pestaneja, olha em volta, e finalmente fecha a boca, que possivelmente gritara. Passam-se os segundos, mas na sua memória as imagens são nítidas. O carro parece estar ali. O carro, o chiar dos travões, o cheiro dos pneus, mesmo a cara do condutor que ele não conhece.
É difícil acordar de um pesadelo, mas no fim é um alívio. Pedro respira fundo, enquanto passa a mão pela testa. Da rua chegam-lhe ruídos de discussão. Levanta-se e vai à janela. Lá em baixo, no alcatrão, dois homens discutem. Um carro está atravessado na rua e outro em posição de ter surgido da lateral. Os rastos da travagem daquele atingem mais de dez metros. Aí está a explicação do aparecimento e do conteúdo do seu sonho.
Pedro volta para dentro, calça os chinelos, alisa o cabelo, e passa do quarto, onde dormira a sesta habitual dos sábados, à sala onde o seu filho se entretém com um automóvel de brinquedo e a sua mulher o recebe com um sorriso.
- O quê? Já acabaste a sesta?
(Continua...)