Joaquim Bispo
O LIVRO DE LABRÃO
Por aqueles tempos, Labrão subiu ao Monte Scopus e postou-se no monumental miradouro de onde se avistava uma grande fatia da cidade velha de Jerusalém. Daquela posição dominante, gostava de contemplar a que tinha sido a grande capital dos Hebreus e que um dia voltaria a ser. Ali se erguera o templo de Salomão, destruído pelos Babilónios, primeiro, e pelos Romanos, depois.
Quando se voltou, viu três homens a fitá-lo, magníficos no seu esplendor, e logo reconheceu que o Senhor estava entre eles. Quis prostrar-se de rosto no chão, mas eles não o permitiram.
- Deixa-te disso. Estou farto de mesuras hipócritas.
- Vinde a minha casa, para que Vos prepare uma refeição. Comprarei o carneiro mais gordo do talho kosher.
- Agora não tenho tempo. Enquanto te banqueteias com as sementes das ervas, os frutos das árvores, os peixes do mar, as aves dos céus e todos os animais que se movem na terra, que Eu te dei, há milhares de irmãos teus que tu matas à fome.
Labrão engoliu em seco. Agora também o Senhor vinha com o discurso de ódio dos inimigos de Israel.
- Todos os meus irmãos têm o que comer e Vos estão agradecidos. Os meus inimigos que se danem!
- E o que te leva a pensar que não são teus irmãos e não têm direito ao banquete que Eu prometi a todos os Homens?
- Vós sempre dissestes que nós éramos o povo escolhido.
- Arrependo-me amargamente dessa declaração. Fiados nela, criastes uma atitude de exclusão de todos os outros povos. Uma xenofobia repelente. Que vos levou a uma incapacidade de manter boas relações com os vossos vizinhos, ao longo do tempos. Enganei-me terrivelmente. Vou escolher outro povo.
Incrédulo, Labrão tentou recordá-lo das antigas promessas.
- Vós prometestes-nos a terra de Canaã, mas quando voltámos da grande diáspora, encontrámo-la ocupada por um povo que não Vos adora. Por isso os expulsámos das suas casas, que nos pertenciam por dádiva Vossa. E os vamos matando de todas as maneiras e empurrando para o deserto, para que pereçam.
- O clamor de sofrimento que Me chega das terras da Palestina e de todas as terras em volta não é mais tolerável. Afinal, transformastes-vos nos mais hediondos seres da Criação. E por isso vou ter de destruir-vos. Vou destruir Israel. O genocídio só a Mim pertence.
Labrão ficou uns momentos calado, os olhos muito abertos. Dominando o pânico, tentou apelar à compaixão do Senhor.
- Mas nós somos justos, Senhor, seguimos a Vossa palavra e os Vossos ditames; nem todos são como dizeis. Se houver um milhão de justos em Israel, destruireis o justo com o culpado?
- Não; Se encontrar em Israel um milhão de justos, perdoarei a nação por causa deles.
- Pode ser que não haja em Israel mais de cem mil justos. Ainda assim destruireis a nação e matareis cem mil justos?
- Se encontrar cem mil justos em Israel, não o destruirei.
- Talvez muitos justos estejam temporariamente tomados pelo espírito do mal e não encontreis em Israel mais de dez mil justos - regateava Labrão, até ao limite. - Destruireis Israel por noventa mil justos temporariamente confusos?
- Não. Pouparei Israel se encontrar dez mil justos no país.
Os três homens afastarem-se e entre eles ia o Senhor. Labrão voltou para casa, com o coração apertado. Não tinha a certeza que o Senhor encontrasse dez mil justos em Israel, segundo este entendimento inesperado Dele.
Na manhã seguinte, Labrão voltou ao miradouro do Monte Scopus. Ia tão ou mais angustiado que no dia anterior, porque, bem cedo, sentira convulsões da terra e ruídos tão profundamente graves, como nunca tinha ouvido. Olhou.
Continua...