Valter Lemos
A justiça que não queremos
O responsável da companhia aérea, antes de nos conduzir para o hotel, deu, entre outras, a orientação seguinte: “não saiam do hotel, mas, acima de tudo, não se aproximem nem falem com nenhum polícia”. Questionado sobre a razão de tal recomendação, respondeu: “aqui os polícias são piores que os bandidos”.
A detenção de José Sócrates tem feito e fará correr rios de tinta e horas infindas de reportagens, comentários, análises e opiniões. Sócrates é, sem dúvida, até ao momento, a personalidade portuguesa mais controversa do século XXI. As inúmeras teses sobre a sua inocência ou culpabilidade continuarão a fluir, quer por razões de emoção ou de convicção quer por razões de conveniência política, alimentando desde o mais troglodita ao mais inteligente comentário, como tão bem exemplificam, respetivamente, João Miguel Tavares no Público e Ferreira Fernandes no DN.
Mas, a alimentação da torrente de notícias e comentários tem, também, razões mais prosaicas como o dinheiro e o lucro. O nome e a personagem vendem bem, que o digam os jornais e as televisões que fazem render tudo o que lhe diga respeito, normalmente através de descaradas violações da lei e da ética jornalística e até, por vezes, dos mais elementares limites da decência, coisas que para alguns órgãos de comunicação social nunca tiveram importância e para outros deixam de importar quando as notícias respeitam a José Sócrates. Até jornalistas pretensamente respeitáveis “mandam às malvas” os princípios elementares do contraditório e da confrontação das fontes quando a matéria é Sócrates. Sócrates dá leitores e espetadores, ou seja, dá dinheiro. Se tivessem alguma coerência, as diversas televisões, jornais e revistas pagariam a Sócrates. Afinal quantos exemplares já venderam o Correio da Manhã ou a Sábado e até o Público com aquelas novelas sobre Sócrates, com as acusações e os ataques à pessoa e à personagem, sempre sem contraditório, que têm enchido as suas páginas ao longo do tempo? E quantos espetadores tiveram as televisões com aquelas ridículas mas rentáveis reportagens de frinchas das janelas e carros a passar e as pretensas investigações sobre casas e malas? Manifestamente as televisões já não sabem fazer informação, já só sabem fazer reality-shows.
Mas, se o comportamento da comunicação social na detenção e interrogatório de Sócrates, infelizmente mostrou bem, como aliás tem acontecido noutros casos, que os cidadãos nada podem esperar de verdadeiramente decente numa informação totalmente dominada e estupidificada pelo dinheiro e pelas audiências, o comportamento da justiça faz arrepiar qualquer pessoa minimamente crente no estado de direito.
O caso Sócrates tem, pelo menos, dois aspetos, absolutamente intoleráveis num estado de direito. A exposição dos suspeitos e a violação reiterada e continuada do segredo de justiça, que é uma forma abjeta e cobarde de violar os direitos de defesa e de presunção de inocência. E o facto de isso já ter acontecido em casos anteriores, só agrava a situação e cria a maior dúvida sobre o efetivo controle e fiscalização do cumprimento da lei.
Num estado de direito que pensávamos construído 40 anos após Abril, as autoridades PROTEGEM os cidadãos até eles serem presentes a tribunal e devidamente julgados. E são obrigadas pela lei e pela ética a fazerem isso. Se o não fizerem estão a infringir a legalidade. O tempo em que os suspeitos eram expostos à turba para serem humilhados corresponde ao tempo do obscurantismo, da injustiça, da indecência humana, da maldade. Isso acabou com o aparecimento do estado de direito (ou, pelo menos, pensávamos nós, até ver acontecer o que julgávamos impossível).
A justiça também não pode parecer um circo nem um filme de cow-boys. A justiça não pode ser apresentada como entretenimento, porque a sua função não é criar heróis e vilões, nem mostrar habilidades, nem distrair as pessoas. É garantir o cumprimento da legalidade e assegurar a confiança dos cidadãos nesse cumprimento. Para isso os agentes da justiça têm que ser ABSOLUTAMENTE cumpridores da legalidade que garantem. Não há nada, mas mesmo nada, que desculpe ou justifique o não cumprimento da lei pelos agentes da justiça.
Não se compreende assim também a reiterada e continuada pouca-vergonha da violação do segredo de justiça. Não se compreende que os jornais divulguem informações ou peças processuais antes sequer dos arguidos ou os advogados delas terem conhecimento. Ou seja, enquanto elas só são supostamente conhecidas do ministério público ou do juiz de instrução. Não se pode aceitar que sejam construídos casos na comunicação social através de informações só conhecidas dos serviços da justiça, escolhidas seletivamente e que não podem ser contraditadas porque tal constituiria uma violação ao segredo de justiça por quem o fizesse. Não é aceitável que possa haver violações quando a informação só é detida por quem acusa e que o visado não se possa defender. Isso é uma batota indecente.
E finalmente não é compreensível nem aceitável que o ministério público seja capaz de investigar crimes de grande complexidade envolvendo centenas de pessoas e entidades e não seja capaz de investigar a violação do segredo de justiça quando a informação constante do processo só é do conhecimento de poucas pessoas e não é acessível por mais ninguém. Nada do que atrás escrevi tem a ver com a eventual inocência ou culpabilidade de Sócrates. Tem a ver com sérios problemas no sistema de justiça, que se têm repetido e agudizado nos últimos tempos e que o caso Sócrates, porque respeitante a uma personalidade pública relevante, só vem iluminar ainda mais. Quanto à possível inocência ou culpabilidade de Sócrates, cada um terá a sua opinião, que só poderá ser avaliada no final. A minha opinião é favorável à inocência de Sócrates. Não só pelo princípio da presumível inocência até prova de culpa e não só pela relação política, profissional e pessoal de diversos anos. Mas, acima de tudo, porque tenho dificuldade em acreditar em quem parece fazer batota para me convencer. Em quem parece não cumprir as regras que impõe aos outros.
Há alguns anos o avião em que viajava teve que fazer uma aterragem de emergência num país africano. Foi necessário pernoitar nesse país para aguardar novo avião no dia seguinte. O responsável da companhia aérea, antes de nos conduzir para o hotel, deu, entre outras, a orientação seguinte: “não saiam do hotel, mas, acima de tudo, não se aproximem, nem falem com nenhum polícia”. Questionado sobre a razão de tal recomendação, respondeu: “aqui os polícias são piores que os bandidos”. Não posso aceitar que, no meu país, possa haver sequer qualquer suspeita dessas. Por isso não quero que a justiça do meu país possa ser espetáculo em vez de sobriedade, entretenimento em vez de trabalho sério, jogo de azar em vez de trabalho continuado, obscurantismo em vez de conhecimento, vingança em vez isenção, poder em vez de verdade, política em vez de justiça.