Maria de Lurdes Gouveia Barata
O 8 DE MARÇO
Era 8 de Março de 1857. Mulheres trabalhadoras numa fábrica têxtil de Nova York faziam greve, com ocupação da fábrica, reivindicando 10 horas de trabalho diário em vez das 16 horas que trabalhavam, lutando pela igualdade ao salário dos homens no desempenho do mesmo tipo de trabalho, reclamando condições dignas. Houve uma resposta: as rebeldes atrevidas foram trancadas na fábrica, a fábrica foi incendiada e 130 mulheres ficaram carbonizadas e tornaram-se testemunho dum exemplo de acto desumano e de violência brutal.
Em 1910, durante uma conferência na Dinamarca, decidiu-se que o 8 de Março passaria a ser o Dia Internacional da Mulher, em evocação do trágico evento de 1857. Em 1975 foi oficializada a data pela ONU, através de decreto. O Dia Internacional da Mulher não é somente uma comemoração da mulher, seria pobre a intenção e até perigosa. Tem de perspectivar-se como uma chamada de atenção para a desvalorização do ser-humano-mulher que, como ser humano, tem os mesmos deveres e direitos do ser-humano-homem, sem restrições de participar na vida em sociedade, profissionalmente e politicamente. Por isso, costumo às vezes perguntar, com provocação, quando é o Dia do Homem. Parece que não precisa de existir, não é? Costumo também irritar-me com a defesa da inversão do estado das coisas: a mulher deve dominar. Apoio os movimentos feministas na sua luta pela igualdade de direitos, acho, porém, tão ridículo o machismo como o feminismo, enquanto supremacias. Mulheres e homens são seres humanos com funções específicas – dou como exemplo a maternidade, o ser mãe e o ser pai – mas com o mesmo direito de intervenção social.
Em prejuízo, está na verdade a história da mulher sem direito a voto durante longo tempo, sem direito à vida pública, sem direito a opinião dentro da sua própria casa, com dever de submissão e de apagamento. Se os trovadores puseram a mulher num altar ainda foi para enaltecimento próprio, buscando um graal para ostentar. Educação de anos e transmissão de gerações levaram a promover o machismo por parte das mulheres-mães, legando aos filhos a ideia do seu domínio de machos, legando às filhas o seu papel de obediência. Lembro-me de uma vez ter discussão acesa com mulheres, que diziam «a mulher domina, porque atrás dum grande homem há sempre uma grande mulher». Lá temos o apagamento: a mulher pode ser de enaltecer, mas não pode estar à vista. Hoje já não é bem assim, pelo menos no mundo ocidental.
A libertação da mulher deu-se verdadeiramente quando começou a bastar-se para sobreviver, sem precisar que a governe um pai ou um marido. Simone de Beauvoir publicou em 1949 a brilhante análise do percurso da mulher em O Segundo Sexo.
A mulher como pertença do homem, relegada para um segundo plano, como objecto que se exibe ou não exibe, a mulher somente agarrada ao lar, somente em serviço do marido e dos filhos, foi-se libertando a vários níveis, a partir da principal libertação pelo trabalho, que lhe deu o grande bem da não dependência. Os costumes, porém, ainda continuam (em muito menor grau) com o parecer bem e o parecer mal da mulher.
Tem sido de grande peso a mulher que se cultiva, estuda, tira um curso, não só em prol duma profissão, sobretudo em prol duma abertura de horizontes e do aumento da consciencialização de si e do seu plano de igualdade ao lado do homem. Lembro-me que ainda estudante adolescente comecei a embirrar com um escritor do séc. XVII, Francisco Manuel de Melo, por causa dos extractos da Carta de Guia de Casados. A mulher devia ser preparada para a submissão ao marido, servindo-o e servindo os filhos, e não deveria estudar, instruir-se, formar-se, apenas o suficiente para educar. O autor reconhecia, contudo, as capacidades intelectuais das mulheres e via nisso um perigo: «aquela sua agilidade no perceber e discorrer em que nos fazem vantagens é necessário temperá-la com grande cautela». Recomendava ainda Francisco Manuel de Melo que o livro adequado para a mulher é a «almofada de coser». Entre os muito provérbios que utilizava destaco: «Que Deus me guarde de mula que faz him e de mulher que sabe latim».
Apesar de importantes conquistas, ainda há muita discriminação, de que não tenho agora espaço para exemplificar. A verdade também, e muito cruel, é a posição da cultura oriental e a garra de ferro sobre as mulheres, com violência e humilhações, em nome da religião islâmica.
A palavra tem força e ganha força no Dia Internacional da Mulher. Nem sempre se utilizam as melhores palavras. E não se pode ficar pelas palavras.