Guilherme D'Oliveira Martins
VOLTAR A LER JÚLIO DINIS…
Se quisermos entrar no âmago do século XIX português e nas raízes profundas do país rural e urbano, real e político, temos de ler um dos nossos melhores autores – tantas vezes injustamente esquecido ou subalternizado. De facto, Júlio Dinis (1839-1871) foi considerado justamente por Alexandre Herculano como o maior talento da sua geração. A afirmação vinda de quem veio não foi feita de ânimo-leve e a História confirmou-a plenamente. Basta reler as melhores páginas do romancista e integrá-las no contexto do seu tempo, para compreendermos a grande importância delas – que se integra na mais rica tradição literária europeia, dando-nos um panorama essencial sobre a realidade portuguesa do tempo. E essa afirmação obriga-nos a pensar. Aliás, os mais profundos analistas desse período são unânimes em considerar que o autor de “As Pupilas do Senhor Reitor” tem de ser mais lido e considerado, não só como grande escritor, mas também como precursor da evolução do romantismo para o naturalismo.
Como afirmou Vitorino Nemésio: «Ninguém melhor que Júlio Dinis compreendeu a mediania portuguesa, a província bucólica e pacata, a aldeia das quatro estações. Os seus livros lisonjeiam a sensibilidade portuguesa porque a refletem». E ainda o mesmo autor, dá-nos uma significativa comparação com as descrições dos contemporâneos nacionais mais notados: «Na nossa cidade romanesca, a rua de Camilo é amarga, um pouco lôbrega: fachadas de conventos, um quinteiro minhoto, ruas escusas do Porto e, num muro beirão, a argola a que o ferrador João da Cruz amarra os machos... A rua de Eça – que é a maior, quase uma avenida – apresenta a frente dos prédios um pouco suja, um cunhal com um candeeiro em Leiria, um bocado de azulejo de quinta rica, e muita gente ridícula que passa, muita cortina e muito saia... (…) De maneira que a ruazinha de Júlio Dinis ainda é talvez a mais concorrida pelas pessoas que, não tendo os grandes bairros fictos de sofrimento e de amor para passear – o casario humano e profundo dos Balzac, dos Tolstoi, dos Dostoievsky, dos Dickens –, se contentam com uma travessazinha portuguesa limpa e curta, de onde se vê o campo, onde umas velhotas falam de cousas ingénuas e antiquadas, mas com marmelada à janela, e onde mora uma família inglesa». Assim, quem conhece a melhor literatura desse período, facilmente compreende que o jovem Joaquim Guilherme Gomes Coelho foi um leitor atento dos principais autores do seu tempo, inserindo-se na melhor tradição de influência anglo-saxónica. Com efeito, o médico que adotou como nome literário Júlio Dinis leu os principais autores ingleses como Fielding (que está sepultado em Lisboa e que Garrett tanto admirou), Dickens Tackeray, Richardson, Goldsmith, Jane Austen, assim como traduziu diversos autores britânicos, o que, a par da sua ascendência anglo-saxónica, bem como da vida que viveu junto de seus avós maternos e de seu pai, manifestamente contribuiu para a sua formação e as suas opções políticas, culturais e literárias.
Júlio Dinis é um autor que se liberta da influência romântica, podendo dizer-se que está a caminho do realismo, anunciando-o com nitidez, em clara demarcação de qualquer visão ilusória. Por isso, afirma a necessidade de encontrar equilíbrio entre sentimento e razão: “Não tenteis a louca empresa de aniquilar o sentimento, espíritos áridos que infundadamente o temeis, como coisa desconhecida à vossa alma seca e estéril. Quem deveras confia nos destinos da humanidade não tem medo das lágrimas. Pode-se triunfar, com elas nos olhos”. E lembramo-nos da apreciação de Eça Queiroz em “As Farpas”, tantas vezes citada e que é uma afirmação de inequívoco respeito pela atitude intelectual do autor de “Fidalgos da Casa Mourisca”: «Tréguas por um instante nesta áspera fuzilaria! Numa página à parte, tranquila e meiga, pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pessoas delicadas se recolham um momento, pensem nele, na sua obra gentil e fácil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve”. Tendo escrito sobretudo no período entre 1861 e 1870, num dos momentos políticos e sociais mais marcado pela estabilidade da Regeneração, deu-nos um retrato fiel desse tempo. E essa consonância com o espírito do tempo articula-se com a inteligente compreensão da necessidade de assumir uma atitude capaz de aproximar pedagogicamente o romancista do leitor, enquanto cidadão de uma nova sociedade constitucional, assente na liberdade e na ideia de soberania popular, bem como de valorizar a literatura como expressão da liberdade criadora. Daí a aproximação à tradição social britânica, que esteve bem presente quando Alexandre Herculano, depois da implantação da Regeneração, recusou que apenas um partido pudesse dominar a situação – abrindo caminho à alternância do rotativismo.
Na “Morgadinha dos Canaviais” encontramos os ingredientes fundamentais para compreender a realidade desse tempo, com a tensão entre o Portugal tradicional e o País que desejava modernizar-se. A Quinta do Mosteiro é um símbolo da sociedade antiga que convive com os tempos modernos. E encontramos os ingredientes que permitem compreendermos a passagem do clima de guerra civil à acalmação: o modo como ocorre a vitória eleitoral do Conselheiro Manuel Bernardo Mesquita (“um dos principais vultos políticos da época,… um perfeito homem de corte”), pai de Madalena, a Morgadinha (“graciosa figura de mulher, suave, elegante, distinta”), a incompreensão popular contra os cemitérios civis, mas o desejo de melhoramentos, o contacto saudável de Henrique de Souselas com as virtudes do meio rural, os encontros e desencontros amorosos, a “figura suave, casta” de Cristina, prima de Madalena, a serenidade de Augusto, a importância do inconstante Joãozinho das Perdizes e os eleitores de Pinchões, a sabedoria do tio Vicente, o ervanário, a sobranceria de Eusébio Seabra, o brasileiro. E notam-se as feridas antigas e a necessidade de as sarar, que estão bem evidentes na atitude pacificadora do ervanário, capaz de entender, sobre a política, a perenidade das relações humanas. É, afinal, a sociedade portuguesa que é descrita com um especial sabor e pormenor. Longe de um romantismo decaído pela abstração ilusória, encontramo-nos perante a literatura que se liga à vida e, (porque não dizê-lo?) à consciência cívica… Mas o sentido crítico está bem presente.