Valter Lemos
O SERVIÇO PÚBLICO E AS EMPRESAS PRIVADAS
A discussão sobre a prestação de serviço público por entidades privadas é sempre objeto de grande discussão política, pois, trata-se de uma questão com uma profunda fundamentação ideológica. Em países com uma tradição governativa mais liberal é natural e socialmente aceite a prestação de serviços públicos, como o fornecimento de energia ou comunicações, educação ou proteção na saúde, por empresas privadas, mas, nos países com tradição governativa mais socialista ou social-democrata a intervenção de empresas privadas no fornecimento de produtos ou serviços de natureza pública não é aceite socialmente de forma tão natural.
O modelo dominante de política pública em Portugal foi, nas décadas seguintes ao 25 de Abril, de inspiração social-democrata, com o fornecimento desses serviços a ser feito essencialmente por entidades de natureza pública. Foram assim organizados os sistema educativo e sistema de saúde, bem como o fornecimento de energia, comunicações, transportes e outros.
Com a governação de Cavaco Silva o modelo estritamente público foi questionado e iniciou-se um ciclo de políticas de cariz um pouco mais liberal, ao qual foi dada continuidade nos governos seguintes, quer do PS, quer do PSD, ainda que com intensidades diferentes, procedendo-se à privatização de empresas de prestação de serviço público em setores como os transportes, a energia e as telecomunicações, à concessão de serviços públicos a entidades privadas e à criação de parcerias público-privadas para a prestação de certos serviços, não só naquelas áreas como em algumas outras como a proteção na saúde. Curiosamente a área da educação foi, talvez a única, em que esta liberalização teve uma menor expressão, mantendo-se o modelo estatal de prestação de serviços. A razão desta exceção merece vasta análise, a qual, no entanto, não é possível no espaço deste texto.
Obviamente que um modelo mais liberal na prestação dos serviços implica uma maior regulação na atuação dos operadores ou concessionários, dado que o número dos mesmos tende a aumentar e diversificar.
A tradição em países de forte tradição liberal é a da existência de legislação muito exigente na definição de padrões de serviço e regras e limites de atuação no mercado, tendo em vista assegurar padrões mínimos dos serviços ou produtos e impedir atuações monopolistas ou concertadas no mercado. Em Portugal o modelo seguido foi o de criação de entidades reguladoras, de natureza pública, mas com autonomia administrativa e técnica na respetiva atuação. Assim apareceram diversas novas entidades reguladoras: Energia – ERSE, Comunicações – ANACOM, Transportes – AMT, Saúde – ERS, Comunicação social – ERC, etc., que vieram juntar-se a outras que já existiam dado os respetivos setores estarem libe-ralizados anteriormente, como a ANAC – Aviação civil, CMVM – mercado bolsista, ASF – seguros e pensões, etc.
As novas autoridades têm sido objeto de críticas públicas frequentes no âmbito da sua atividade, especialmente a Entidade Reguladora para o Setor Energético – ERSE e a Autoridade Nacional de Comunicações – ANACOM. Estes setores de atividade têm o mais elevado nível de queixas dos consumidores, que não param de aumentar todos os anos.
Na verdade, o mercado de distribuição de eletricidade e gás e o mercado de telecomunicações parecem mostrar, do ponto de vista do consumidor, uma enorme anarquia no comportamento dos operadores. A relação personalizada com o consumidor desapareceu, sendo hoje assegurada através de call centers totalmente despersonalizados e aparentemente anárquicos. O marketing e venda dos serviços é excessivamente agressivo, frequentemente enganoso e quase sempre distante e sem rosto. As condições de esclarecimento, defesa e contestação do consumidor estão totalmente nas mãos das empresas vendedoras dos serviços, obrigando, na prática à submissão total do consumidor às exigências do vendedor. A possibilidade de litígio implica um enorme prejuízo para o consumidor dado que todas os meios estão na disponibilidade do prestador. Em suma a desigualdade de meios de atuação é de tal forma gritante que o consumidor é quase sempre forçado a aceitar um prejuízo menor do que o prejuízo maior de ficar sem serviço.
Assim, as críticas que são feitas às entidades reguladoras parecem fazer muito sentido. A atuação das mesmas parece cingir-se às regras abstratas de concorrência e ao quadro macro empresarial, despre-zando as questões concretas de prestação do serviço a cada consumidor e permitindo assim uma enorme desregulação ao nível micro, que é afinal, o que importa a cada cidadão.
Urge, pois, uma alteração da ação das reguladoras no campo da prestação concreta do serviço e não só das condições abstratas do mercado.
Na verdade, só mesmo por cinismo se pode ignorar que uma parte significativa da população portuguesa, pouco escolarizada e com enormes debilidades técnicas e tecnológicas, está sujeita a uma exploração escandalosa, a enganos e vigarices, por total ausência de verdadeira fiscalização e regulação (micro) indispensável a um verdadeiro serviço público.