Edição nº 1763 - 19 de outubro de 2022

Maria de Lurdes Gouveia Barata
MULHER, VIDA, LIBERDADE (ZAN, ZENDEGI, AZADI)

Mulheres de todas as idades elevam as suas vozes num grito de revolta no Irão: zan, zendegi, azadi – mulher, vida, liberdade. Mas o grito tornou-se internacional (em várias cidades do mundo ecoaram manifestações), espalha-se com a solidariedade perante a injustiça e torna-se clamor a ganhar força incomodativa para opressores, para todos aqueles que teimam em considerar a mulher inferior e submissa ao poder masculino.
Mahsa Amini, de 22 anos, a jovem curda detida por alegadamente usar o hijab (véu tradicional muçulmano que tem de cobrir a cabeça e os ombros) de uma forma imprópria. As regras de bons costumes a seguir pelas mulheres são vigiadas pela polícia da moralidade (que é, decerto, o que já li de referência a Patrulha de Orientação da República Islâmica do Irão), uma unidade especial que vela pelo bom comportamento feminino. Presa, foi espancada e torturada, entrou em coma e morreu no dia 16 de Setembro de 2022 (século XXI) num hospital de Teerão. Seria presumível que as autoridades anunciassem como justificação da morte causas naturais, uma insuficiência cardíaca, como foi dito no relatório oficial da polícia. E um basta levou a manifestações lideradas por mulheres, manifestações em que já morreram dezenas de mulheres, manifestações em que a coragem de enfrentar a morte, se preciso for, nasce da revolta contra a submissão degradante e transforma-se em luta pela liberdade.
É mesmo uma luta em que se enfrenta a morte. Vários casos já foram relatados, mas retenho a notícia de jornais e televisão da jovem de 16 anos, Nika Shakarami, presa num dos protestos depois da morte de Mahsa Amini. Moradora em Teerão, saiu na tarde de 20 de Setembro, pelas 17 horas, para participar na manifestação que iria concretizar- -se e desapareceu. As várias diligências familiares foram infrutíferas e dias depois foram informados dum corpo encontrado que necessitava de reconhecimento. Era Nika. Foi dito que tinha havido queda de grande altura, era o que a família devia dizer. A mãe de Nika acusa-os de assassinato. Proibiram funeral público e cederam o corpo, roubado depois pelas autoridades que o enterraram a cerca de 40 Km de onde a família desejava. Tiveram com certeza medo dum funeral que desse azo a manifestações. É que além do grito de «mulher, vida, liberdade», também se costuma ouvir um outro. «morte ao ditador». Daí que os ditadores tenham consciência do perigo de contestação perante vítimas que se transformam em heroínas. Todavia, a malvadez não tem limites: não vai parar de fazer mais vítimas, se alguém acreditar que o seu poderio pode tremer.
Longo, longo tem sido o caminho da mulher em prol da sua liberdade pela qual tem lutado. Ainda não há muitos anos, o trabalho da mulher era apenas doméstico, implicando evidentemente a educação dos filhos. Tinha mérito, muito, nem sempre reconhecido. Mas foi quando o trabalho da mulher ombreou com o trabalho dos homens que ela começou a sua libertação. Em 1949, Simone de Beauvoir publicava uma obra importante: O Segundo Sexo. Nela analisa o papel da mulher e a evolução para a sua autonomia através do trabalho. Donde vem esta importância? Do facto de poder bastar- -se a si própria, mesmo não se casando.
ELA foi cantada pelos poetas e é sempre fonte de inspiração. E os poetas fizeram-na a MULHER amada, a Mulher trabalhadora, a Mulher-mãe, porque os homens a amam e ELA é a Mãe dos seres humanos. ELA é objectivamente e naturalmente o ser humano do sexo feminino, é fêmea fecunda, mediadora dos filhos da Terra. ELA é um ventre feiticeiro que torna concreto o milagre da vida. Pode ser loira ou morena, negra ou branca, chamada de linda ou feia, que sempre os seus braços são maternos, amantes, corajosos e lutadores. E ELA aí está na casa, que foi o seu lugar único durante anos, no campo, no escritório, na escola, na política, desperta para uma vida total. A mulher tem direito a definir o seu próprio destino. Há o ser humano homem, há o ser humano mulher, são todos estes seres humanos que entretecem a teia da humanidade. Nenhum desses seres humanos – o homem ou a mulher – tem o direito de se sentir dono do outro ou de assumir uma supremacia.
Eis-nos no século XXI e a Mulher continua a luta pelos seus direitos. Nas manifestações houve queima do hijab e cortes simbólicos de cabelo e houve aplausos de multidões. Não vão perder a força de Sansão, quando lhe cortaram os cabelos. Vão ganhar a força de um desafio destemido e corajoso. O acto simbólico tem a veemência duma afirmação inabalável, seguido solidariamente por algumas actrizes e cantoras francesas, como Juliette Binoche (que exclamou pela liberdade!, enquanto cortava uma grande mecha do seu cabelo ruivo), Isabelle Huppert, Marion Cotillard e Isabelle Adjani, assim como a deputada sueca Abir Al-Sahlani, de origem iraquiana, que afirmou durante um discurso na Assembleia da União Europeia, que “até que o Irão esteja livre, nossa fúria será maior que a dos opressores. Até que as mulheres do Irão estejam livres, vamos ficar convosco». Após o discurso, ela pegou numa tesoura e disse “Jin, Jiyan, Azadi” — frase em curdo que significa “Mulher, Vida, Liberdade” — enquanto cortava o rabo de cavalo. Termino com um poema de António Salvado, «À MULHER VIOLENTADA»:

Se feita de pureza, macularam
todo o teu corpo entregue à ignomínia,
mancharam o teu espírito, sangraram
teu existir e a forma feminina
que te contorna o ser às vezes destruído.
Porém, mulher, a tua força ergueu-se
e a tua voz ouviu-se pelos céus –
se te mataram ressurgiste à vida,
e, senhora de ti, será só teu
o fervor dum futuro conseguido
e um firme sim ao não que não venceu.

19/10/2022
 

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