José Dias Pires
NO LUGAR DE LER A LONJURA TEM PALAVRAS
O avô foi um leitor iluminado.
Ele dizia-se um professor de filosofia de pavio curto.
Uma manhã, ao caminhar no passeio do rio, sentiu uma estranha sensação de regresso ao passado. Um regresso ao lugar que julgara desaparecido e que mantinha a luminosidade apetecida e o aroma suave das palavras ditas pela irrequieta imaginação do seu avô. Foi assim que redescobriu o lugar onde era lido, em voz alta, o que os olhos, os ouvidos e o coração ditavam: o Lugar de Ler.
Tantas vezes disse «Que pena não escreveres, avô!», que um dia obteve a resposta: «Não te preocupes, meu filho. A memória é a mais completa das escritas, e as palavras ditas a mais perfeita das leituras. Assim haja quem se queira lembrar e não se importe de o dizer em voz alta».
Chegado o lugar onde se encostavam, também ele decidiu deixar de escrever tudo o que conseguia olhar, ouvir e sentir.
Às sextas feiras, manhã cedo, sentava-se sempre no mesmo banco. Arrumava, à sua direita, o caderno negro de capa dura onde guardava várias folhas soltas, impecavelmente dobradas, e uma caneta de tinta permanente pendurada, por dentro, na contra capa. Fazia-o com cuidado de avô, que nunca seria, antes da tentativa de levar o olhar até ao último ponto da paisagem.
Aquela lonjura tinha palavras. Tantas, que não cabiam numa enciclopédia. E, se coubessem, de pouco lhe serviriam: ele já tinha cortado relações com os carateres que as compunham. Também não era preciso: mesmo sem letras, as palavras daqueles lugares tinham luz, cor, formas e falavam com os seus pensamentos: contavam-lhe as suas vidas e as suas mortes, porque, também elas, nasciam e morriam como as abelhas e as formigas, e só não cresciam e definhavam como as pessoas porque desapareciam com o sol vencido pelas sombras.
À noite, fechava os olhos e revia-as uma a uma. Transformavam-se em animações vivas e em vidas inanimadas; em alegrias possíveis e tristezas certas; em amores desprezados e ódios desejados.
Enrolavam-se e desenrolavam-se como as ondas do mar e escapavam entre os dedos como a areia da praia. Quando não sussurravam o que lhes acontecia, tinham bocas e gritavam o que poderia ter acontecido, para o acordar.
Eram essas informações que o ajudavam a construir todas as histórias vindas do traço final onde o olhar se perdia; que não cabiam numa enciclopédia e para as quais bastava uma folha de papel escrita, sem palavras.
Quando se cansava da distância, olhava o que lhe estava próximo. Começava com a leitura de si, com os olhos bem abertos e fixados num ponto longínquo, quase impercetível, depois, sem olhar, partia das pontas dos dedos das mãos, passava pelos promontórios dos pés e deixava que os olhos se alongassem até ao princípio do que imaginava ser o destino da sua sombra e do carreiro das formigas que transportavam para o formigueiro migalhas, palhas e minúsculos pedaços de folhas onde se escondiam as letras mais invejadas que, ao serem invisíveis, lhe eram absolutamente desconhecidas.
As suas, eram palavras de letras quietas, cansadas de ser tão facilmente vistas e pisadas. Sabia-as todas de fio a pavio, pois o lugar de onde as lia era sempre o mesmo: mudavam de luminosidade consoante a época do ano ou o tamanho das sombras das nuvens que passavam, e ganhavam novas formas e posição relativa, quando a sua imaginação assim o entendesse.
Algumas tinham família, e vinham preencher-lhe o desconhecido com algazarras desproporcionadas ou harmoniosas; outras viviam solitárias, informes e tranquilas, num silêncio atento. Conhecia-as bem: pareciam-se consigo e falavam-lhe sempre por dentro e para dentro, antes de se autorizarem a ganhar ouvintes.
Apesar de ser ele que as olhava, eram elas que lhe ofereciam, com inaudíveis sons, os bons dias.
Partia antes de chegar a tarde, na esperança de ceder o seu lugar de ler a outros que fossem capazes de perceber que aquela lonjura tinha palavras que chegavam e partiam de um ponto muito distante mas fundamental para a leitura da vida.
(Primeiro excerto de Vento do Fim)