Edição nº 1878 - 15 de janeiro de 2025

Maria de Lurdes Gouveia Barata
ANO NOVO, NOVA ESPERANÇA

O ser humano tem um magnífico poder de adaptação às mudanças. De grandes mudanças falamos no mundo de hoje, de que somos parte integrante. Alastram notícias das guerras, da doença (já há interrogações sobre a hipótese de outra epidemia, ou mesmo pandemia, sobre a gripe das aves…), da crueldade que parece ter invadido muitos corações humanos (mata-se por dá cá aquela palha com total desrespeito pela vida), da opressão, da liberdade em perigo (seja pela tomada do poder por loucos, seja por aumento das discriminações de outros que também habitam o planeta), da ameaça de tornar-se mais perigosa a alteração do clima. É um mundo que se torna temeroso.
Todavia, falei no início de poder de adaptação perante a mudança. Essa adaptação vai ancorar numa capacidade de dar resposta e tem relação com a própria necessidade de sobrevivência. Tudo muda. Heráclito (filósofo pré-socrático, cerca de quinhentos anos antes de Cristo) já dizia que a única coisa que não muda é que tudo muda. Ainda estudante de liceu, um professor de filosofia (o Dr. Moniz Rebelo, e aqui lhe presto homenagem) muito me ajudou a saber pensar e a amar a filosofia e a psicologia. Foi a ele que ouvi pela primeira vez uma frase sobre Heráclito, que rememoro: ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio. Efectivamente, assim se passa na nossa vivência e invoco ainda o filósofo citado sobre o homem que volta ao mesmo rio: nem o rio é o mesmo rio, nem o homem é o mesmo homem. Por isso, a tal capacidade de adaptação, que leva a mudar processos de conhecimento com novas percepções e interpretações, que leva a uma adaptação emocional para um equilíbrio psicológico, que leva ao ajustamento de comportamentos perante novas situações e relações sociais.
Temos uma resposta à mudança referida, que é distópica e por isso agressiva, com a alegria dos novos nascimentos, dos exemplos de solidariedade, das lutas, em que devemos teimar pela paz e pelo estatuto de sermos livres, que advém duma vivência democrática e dum relacionamento fraterno. Emocionalmente, também se pode conseguir uma resposta de adaptação através do que se chama o espírito positivo, numa luta e crença nos valores universais. A negatividade destrói antecipadamente, porque imagina antecipadamente tragédias e concede dor precoce antes de ser dor na realidade. Atrevo-me a tudo reduzir numa luta do Bem contra o Mal.
Entreguei-me quase sem querer a uma divagação a propósito do Ano Novo. Na passagem do Velho para o Novo o nosso coração abre-se em expressões de desejos de Felicidade, como a Saúde e a Sorte, num sonho de Alegria a vir, tornando o voto emotivo na amálgama das bolhinhas douradas e cintilantes da taça de champanhe com a lucilação dos olhos marejados. «O amor é o caminho que nos leva à esperança» diz José Tolentino Mendonça. O momento transforma-se em esperança e tem verdes de floresta e azuis de firmamento e poder de fogo que aquece e ilumina. Lembro-me logo do poema de António Gedeão «Máquina de Fogo» (Máquina de Fogo, 1961): «Meu coração é máquina de fogo, / luz de magnésio, floresta incendiada. / Combustar-se é o seu próprio desafogo. / Arde por tudo, inflama-se por nada.» A vibração do coração humano leva à vivência participada, a um relacionamento com os outros, não ficando indiferente. A indiferença é um dos maiores males, porque nasce da insensibilidade e do egoísmo, nega o amor ao próximo. Falamos de corações empedernidos, que parecem não pulsar com sentimentos de amor e amizade, não se condoer, não se emocionar. São desumanos e mostram a indiferença. A indiferença faz doer aos que precisam de atenção ou de ajuda. De Cecília Meireles, um poema sobre a indiferença, de seis tercetos de que transcrevo quatro:
Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa. (…)

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa. (…)

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)
Supomos que o Ano Novo nos vai trazer um tempo melhor e é bom que assim pensemos. Sentimo-nos com a força duma resposta e a esperança invade-nos a alma. A esperança move o homem numa acção e numa luta por vida mais justa. A esperança está enleada no entusiasmo e na persistência. Os poetas falam da esperança como benfazeja, quase deusa. Muitos deles tiveram sempre a palavra esperança nas suas palavras poéticas. Neste momento, destaco dois que designo com poetas da esperança: Miguel Torga e António Salvado. A sobrevivência está na luz da esperança. Em Jardim do Paço («Esperança I e II») António Salvado invoca-a como luz (a luz torna-se sol, princípio da vida), que impulsiona o desejo e a vontade de viver, tornando-se lenitivo: «E quebra / a ressonância da melancolia, / refuga pranto e mágoa: confortada / pelo socorro que entrega.» («Esperança II» 3ª est.). A esperança torna-se um motivo de sobrevivência («Esperança I, as duas primeiras estâncias):
Tu és de sempre como o tempo,
tu és de longe como o espaço.
Súplica de cada momento,
falas – se o ânimo quebrado
nos enregela o pensamento.

Reapareces na tristeza
de uns olhos baços perseguidos
e és bem mais alta que a beleza:
âncora, os teus ganchos são vivos
gumes de sol e de certeza.
(…)
Tendo em conta as reflexões anteriores sobre luz, sol e sobrevivência, retenho os gumes de sol que se entalham na âncora da esperança, que é factor de resistência.
Escolhi de Miguel Torga um poema sobre esperança (Diário X - Miramar, 19 de Agosto de 1967), que se apresenta como um Juramento de crença e lealdade:
ESPERANÇA
Quero que sejas
A última palavra
Da minha boca.
A mortalha de sol
Que me cubra e resuma.
Mas como à despedida só há bruma
No entendimento,
E o próprio alento
Atraiçoa a vontade,
Grito agora o teu nome aos quatro ventos.
Juro-te, enquanto posso, lealdade
Por toda a vida e em todos os momentos.
Que dentro de nós sempre exista o viço da esperança!

15/01/2025
 

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