Maria de Lurdes Gouveia Barata
NA ORDEM DO DIA: ANTÓNIO SALVADO
- de tudo dou notícia
no meu deambular de peregrino;
olhos despertos tudo trago a mim,
tudo devolvo com palavras ‘scritas.
António Salvado , “Testemunha”, Com as Mesmas Palavras
Ancorando na epígrafe, estância que seleccionei do penúltimo livro de António Salvado (Um Adeus Solidário de Ternura seguido de Com as mesmas Palavras), direi que o poeta se assume como testemunha da vida, simultaneamente compartindo com os outros o seu viver. É um legado de palavras escritas, que são poéticas, são arte.
No apontamento que hoje faço não cabe uma linha de leitura suficientemente completa, anoto porém que os motivos salvadianos estão presentes. Em Um Adeus Solidário de Ternura traz-nos, no entanto, uma predominante voz confitente, de balanço de vida, não querendo dizer com isto que seja novidade. Alguns poemas tornam visível um eu que se afirma não totalmente conhecido pelo outro – os que partilharam quotidianos. Nesses quotidianos inscreve o contexto físico dos verdes, com árvores, flores, montes, águas correntes, numa vivência de vir de longe, “depois de muitos calendários gastos” (p.11), em que se dimensiona um percurso de ganhos e perdas. A ideia de rios correndo, numa perspectiva de Heráclito na mudança do rio (o rio a que voltamos nunca será o mesmo) e na mudança do homem (também o homem não será o mesmo quando volta ao rio). No ir e vir da vida visita-se sempre a ideia de morte, pois mudar implica pequenas mortes. Ficam lembranças, que vários poemas documentam, evocações da infância e do amor, e vem “a ponte da saudade e do desalento” (p.17), a referência a partidas e regressos, num amargor de despedida, num estremecimento de esperança, em que o canto poético talha uma eternidade de testemunho. Daí que fale de “louvor, louvor reconhecido ao canto” (p.12), um canto que se impregna também de amizade, de “jovem alegria” (p.45), de fraternidade (p.48), continuado canto porque a canção nunca se extingue no seu ser (p.51). Com as Mesmas Palavras é uma segunda parte que continua a falar de vida, na assunção de passagem efémera, de música que é panaceia de solidão, do canto que as manhãs trazem consigo e que as palavras guardam. Os motivos da natureza, do olhar, do privilégio do sol, da luz e do sonho, dos instantes de tristeza, ou de ilusão, ou de desilusão, ou da ânsia dos passos vagabundos, dos horizontes com estrelas, das neblinas, das névoas conotadas com a alma, das interrogações, da noite, sempre emergindo a esperança com “rosas abrindo” (p.125) – de tudo dá notícia (p.133), com o Desejo de vida: “que entre o revés vigore a primavera, / que dê feliz porvir às horas d’hoje” (os dois últimos versos do poema final da obra, “Vazio”, p.137).
No passado 8 de Outubro, novo livro de António Salvado é trazido a lume: Poemas Escolhidos, uma selecção das mais de sessenta obras publicadas. De destacar a escolha ter sido feita pelo autor, o que abre outras portas de leitura. Foram escolhidos um a três poemas de cada obra, embora de três livros (constantes do índice) não tenha sido feita qualquer escolha.
Como leitora fiel de António Salvado apraz-me esta pequena antologia, embora confesse que, para obra tão extensa, gostaria de uma mais alargada selecção numa antologia bem mais volumosa, mais adequada a este poeta.
Neste ano de 2016, assistimos a três publicações de António Salvado: 18 de Abril (As Linhas que Perduram), 19 de Setembro (Um Adeus Solidário de Ternura seguido de Com as mesmas Palavras) e 8 de Outubro (Poemas Escolhidos). Por isso digo que António Salvado está na ordem do dia, porque acresce o estatuto de conferencista, de apresentador de livros, de promotor de várias formas de cultura.
Para finalizar a breve agenda, refiro mais uma vez o título de Doctor Honoris Causa, recebido na UBI no passado 10 de Outubro. É mais uma consagração para este grande poeta da língua portuguesa. Momentos de 2016, momentos deste Outubro, que partilhámos com justificada alegria.
Com um poema termino:
SE O TEMPO…
Se o tempo te faltar
redobra o tempo:
o amor merece a estrada
mais remota infindável
e todos os momentos do momento.
(António Salvado, Certificado de Presença)