19 de junho de 2019

Maria de Lurdes Gouveia Barata
A POESIA DE ISABEL SALVADO - UM LABIRINTO INQUIETO NO CORAÇÃO DA VIDA

Isabel Salvado é uma poetisa escondida, uma vez que não há um livro publicado que nos permita ter as suas poesias à disposição para quando nos apetecer uma leitura. Estão dispersas em revistas e jornais ou no recôndito de alguma gaveta da sua intimidade. O que me foi propiciado por alguns dos seus poemas motivou-me para um apontamento que, embora breve, exprime o mérito que lhe atribuo como leitora. Acresce que essa motivação veio também do Recital de Poesia (poesia de Isabel Salvado) que se realizou no foyer do Cine-Teatro Avenida no dia 5 de Junho passado. Penso que a atenção e algumas intervenções do público revelaram sinais de apreciação.
Diria que a poesia de Isabel Salvado tem a força de seiva porque alimenta com a palavra uma memória evocadora de vida, que se prolonga num presente de escrita e num presente de leitura. Emerge um cântico à vida, por exemplo através do elemento mar – «Falo do mar, outra vez como um cântico» («Escutem: ainda não aprendi…») – tal como a poesia é canto e anuncia «uma seiva marítima na pele» (ibidem) no correr do vento e do mar, que é a água, um dos símbolos da vida. Vários elementos marítimos enleiam-se numa linha de mar, como búzios, algas, corais, areia, dunas, vento, gaivotas, falésias.
A seiva da palavra carreia a seiva da vida e de uma iniciação, que a casa polariza. A casa é o elemento que reúne os vectores que conduzem ao acto de habitar a vida, como a infância, a árvore (outro símbolo de vida), o lugar, como a cidade, as terras da raia em que há vivência, a infância, porque «a infância é um lugar» («As casas não acontecem: habitam-se»), as janelas, a cor, com predominância do verde, que nos remete para a Natureza. A casa torna-se matriz para a vida e para a palavra poética que fala do viver. Há um longo poema centrado nesse motivo casa - «As casas não acontecem: habitam-se» – mas há várias referências à casa noutros poemas. A casa é um enleio com a vida. O poema referido inaugura com essa assunção: «É este o mistério de uma casa, a morada habitando o / tempo (…)» e é na memória que acontece «a casa emergindo de uma música». Na perspectiva de mistério - «o meu mistério foi uma casa» - (e não esqueçamos que a vida é mistério) vem o enigma de um poder e o secretismo do que há de mais íntimo na afirmação do ser. A casa da infância foi pássaro e asas nessa iniciação que levou à descoberta do mundo e ao sonho. Tempo das primeiras palavras e da revelação do prazer da escrita. E do primeiro amor. Mesmo com a mudança ficou a casa na memória, uma casa vazia (mas presente), transformada em moldura do passado, uma «dissolução de promessas», «um jogo de cicatrizes», uma marca indelével dum lugar e de um tempo. Na invocação está o desejo, o afecto, a saudade do inesquecível: «Branca casa: assim te vejo, te quero. E invoco.» Por isso «as casas são insubstituíveis». Consideremos uma simbologia de casa, tão profundamente tratada por Gaston Bachelard e outros filósofos. A casa é um centro do mundo, representando o ser interior, ligada ao paraíso perdido da infância, lugar de refúgio e protecção, imagem de intimidade que se torna arquetípica, imagem que instaura um centro, criando um universo, como diria Eliade. No budismo e no taoísmo, as casas representam o corpo humano e nunca mais acabaríamos se discorrêssemos sobre o simbolismo da casa. Continuando com o poema de Isabel Salvado, são paradigmáticas as palavras poéticas: «A minha casa foi o meu corpo»; «um labirinto inquieto no coração da vida». O título do poema «As casas não acontecem: habitam-se», que se repete quase no final do poema, ganha a marca da casa como um engaste na alma, o ser humano fica marcado pela casa e a casa tem as marcas que replicam quem a habitou. Numa visão da parte que se projecta num todo, a casa, como lugar vivido, representa um caminho indelével de passagem pela Terra, espelha a integração num universo.
Predomina um tempo que é o da memória - «memória silenciosa o tempo a navegar em mim» («Amarante»), porém um tempo presente com a consciência desse passado e a consciência da efemeridade e da mudança - «Mas a folhagem das árvores é um instante. Leio meus / poemas. Noutra leitura. Leio o tempo em que fazia das / palavras uma viagem» («As casas (…)») – e o tempo num continuum de sucessão da vida - «O tempo é isso: os gestos sucessivos sobre o mar» («Para a Sophia, um coral habitado») e um tempo renovado nessa sucessão dos dias - «A certeza do tempo ser redondo no verde repetido» («Amarante») -, um tempo que foi também e sempre um tempo de escrita: uma das suas recordações é «a poesia na densidade da luz» («Amarante»); em «Terras da Raia», pelo encantamento do olhar, expressa a motivação dessa escrita através da vivência experimentada: «O trigo, o linho, o ocre: tudo motivos para falar das / terras lavradas, das manhãs, dos calores». A escrita é ainda procura da paz numa intimidade que se quer revelar: «O que escrevo é uma espécie de exílio para ser dito como um murmúrio, como um gesto que procura o equilíbrio incerto» («Poema»), numa procura catártica sem garantia, porque o equilíbrio pode não ser conseguido ou não ser duradouro. A escrita é uma realização de horizonte largo no mistério da vida e do seu rumo, «um poema não é um lugar isolado» («Poema»), porque o poema aglutina o espaço, o tempo e o ser, é «um endereço» dos instantes preservados na memória, torna-se dor e sublimação - «um poema por dentro que me salva» («Escutem: ainda não aprendi…»). A poesia de Isabel Salvado acompanha o ciclo vital, é também labirinto inquieto no coração da vida, embora este verso seja uma referência à casa com alusão a um todo. A poesia presentifica-se no cruzamento de caminhos de rotas procuradas, labirinto percorrido pela inquietude de um eu poético atento.
A luz está presente, a música está presente, a vida está presente e lateja nos poemas com a energia da própria vida. Por isso digo que é uma poesia que tem um vigor de seiva. Entra dentro do leitor. Entra dentro… É guardiã de afectos e da vida, mesmo que dorida, mas é canto à vida.

19/06/2019
 

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