Maria de Lurdes Gouveia Barata
O CINZENTO E O VERDE
O papel branco sob os meus olhos e a caneta no ar, encostada ao polegar e ao indicador, inapta, à espera de ordens da cabeça e do coração, os líderes que a têm a seu serviço. A caneta desempenhou profissão ao longo dos tempos e fez história desde a pena donairosa até à despachada esferográfica – fez história, construiu histórias e História, lavrando com tinta a vida dos homens. Regista lentamente: Novembro. Mês de caminho para o Inverno. O dia em que escrevo é nevoento e já está frio. Lá está: Dos Santos ao Natal, Inverno natural. Amanhã é Dia de S. Martinho e não me parece que traga aqueles dias de intervalo com sol. O tal breve Verão. Será Dia de São Martinho, lume, castanhas e vinho. Uma só palavra (neste caso Novembro) chama outras e, assim, vou pôr a caneta a trabalhar.
O dia em que escrevo está enevoado, mas sossegadinho, sem qualquer brisa. O frio penetra por osmose no corpo. Mas este sossego nevoento chama a meditação, lembra vivências, convoca reflexões sobre a vida. Quem não evoca o cheiro das castanhas assadas num magusto ou que sobe do carrinho do homem (ou da mulher) das castanhas, um cheiro que se enrola no fumo, pequeno nevoeiro em espiral que se embrulha e integra num dia brumoso e acaricia o coração? Quem não ouve ao longe a voz de Carlos do Carmo a cantar «O Homem das Castanhas» de Ary dos Santos? Chama-lhe o eterno homem das castanhas que «Num fogareiro aceso é que ele arde /
Ao canto do Outono, à esquina do Inverno» e o refrão ainda ressoa em cada Novembro, como cantilena que se esculpiu no coração:
Quem quer quentes e boas quentinhas?
A estalarem cinzentas na brasa
Quem quer quentes e boas quentinhas?
Quem compra leva mais calor p’ra casa
Todavia, esta brandura de dias nas ruas das cidades em quotidianos de trabalho, que um cartucho de castanhas adoça no regresso a casa, não se prolonga na inquietação do mundo, este orbe que é um pontinho azul no universo e, à medida que nos aproximamos, temos mais visibilidade de sinais de tempestade, seja a da Natureza, seja a dos seres humanos. A crise climática tornou-se altissonante de tragédia de tufões com força jamais vista, de tornados devastadores como o recente que se verificou no Brasil, no interior do Paraná, destruindo cerca de 80% da cidade de Rio Bonito do Iguaçu, com ventos que chegaram a atingir 250 Km /h, desenhando-se um desolador cenário de destruição, com registo de seis mortos e mais de 750 pessoas atingidas. Há quem tenha registado um minuto de duração num malfadado dia que foi o de 7 de Novembro. Igualmente terrível foi a devastação provocada pelo designado supertufão Fung-Wong, que provocou a evacuação, em 9 de Novembro, de mais de um milhão de pessoas nas Filipinas. Chegou a ter 1600 quilómetros de extensão. Fica-se esmagado de espanto e medo, como quando se assiste a um filme de terror de ficção científica.
Será que ainda existe quem não acredite nas alterações climáticas e suas consequências?! Quem não assuma que o maior responsável é o ser humano? Mas há já muitos homens de boa vontade que acreditam e querem passar a uma prática urgente. Notícias chegam-nos com um título que é grito desesperado: «Cimeira no Brasil para tentar salvar o planeta». Dias antes do seu início em 10 de Novembro, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, anunciou: «O tempo das negociações acabou», porque a urgência empurra para a passagem aos actos. Vai resolver-se o futuro do nosso planeta. Ou tentar resolver-se?! E é um futuro imediato. A COP30 (Conference of the Parties) é a 30ª conferência mundial sobre as mudanças climáticas, promovida pela ONU e realizada na cidade brasileira de Belém do Pará, na Amazónia. É nas COPs que surgem os principais acordos internacionais voltados para o clima, como o Protocolo de Quioto (1997) e o Acordo de Paris (2015). A COP30 concretiza- -se entre 10 e 21 de Novembro 2025. Cerca de 200 líderes mundiais. No entanto, acrescento uma notícia: «Na cimeira, os líderes mundiais, sem a presença do negacionista Donald Trump e de alguns dos maiores poluidores mundiais, como a China e a Índia, definiram as directrizes para as delegações que debaterão o que fazer para reduzir a actual devastação ambiental do planeta: acelerar a transição energética, ampliar o financiamento climático e preservar a todo o custo as florestas tropicais». A Amazónia torna-se, assim, um local de excelência.
Dum céu cinzento de Novembro, um cinzento de bruma, com nuvens negras encasteladas e ameaçadoras de tempestade, com som rouco de mar distante e agitado, com relâmpagos que desenham cordas no céu electrizado, surge, como fantasmagoria, o vozeio do nuclear, que não acredito ser de retórica. Pé ante pé, com testes de três tipos, o terceiro é o pior pela explosão subterrânea, que faz estremecer o corpo da Terra. A ousadia de apenas referir ou falar disso já é, por si própria, um assombramento de estupefacção. Já ouvi comentadores televisivos sobre este perigo escorregadio. É a ameaça humana, a maior, na boca de loucos com poder. E já não quero continuar esta conversa.
As guerras a que assistimos são outra ferida em carne viva que inquieta a humanidade. Mesmo assim, os homens teimam e têm fé em dias melhores. Outros problemas aparecem, que têm a ver com a desigualdade e a dignidade humanas. Mas teima-se continuadamente na vida. A esperança desponta sempre como flor que desabrocha entre duas pedras. Nas Jornadas de Medicina na Beira Interior, realizadas desde 1988 em Castelo Branco, tem-se concretizado nos últimos anos a publicação de uma colectânea de poesia subordinada a um tema, com participação de vários poetas, sendo alguns participantes dessas Jornadas. Este ano coube o tema da esperança (o título da colectânea, De tão cansada a Esperança, é igualmente título de uma obra de António Salvado para o homenagear). Daí que faça pequenos excertos de dois poetas que integram a colectânea:
(…)
Esperança é ponte sobre abismos,
é quem nos empurra quando tudo puxa para trás.
É o que sussurra ao ouvido:
“Vai. Ainda há flores por nascer”.
(Vera Reis, «Quando a luz se recusa a morrer», última estância)
Como as aves que voam para o nada
partimos, meu amigo
à procura dessa esperança
que não se há-de dissipar.
(Leocádia Regalo, «Como as aves que voam para o nada», primeira estância)
Urge continuar, partir na procura dum futuro melhor! Com o sussurro da Esperança.