Maria de Lurdes Barata
DO CORAÇÃO DAS SAUDADES...

DO CORAÇÃO DAS SAUDADES...
Ao Padre Manuel Ribeiro Toscano
ACONTECIMENTO
Por entre as lágrimas desceu
uma palavra amarga e aflita…
(Parece que um Homem morreu).
ANTÓNIO SALVADO, Cicatriz
Eis, mais uma vez, a palavra como expressão do ser e do sentir, neste momento amarga e aflita perante a morte, perante o desaparecimento, que abre o vazio da presença de alguém querido. Foi este poema de António Salvado que me aflorou o coração na hora duma perda. O poeta utilizou a maiúscula em Homem, para abranger qualquer homem, todos os homens. De anotar ainda que Cicatriz é de 1965 e deixa inscritas as marcas da guerra do ultramar no poeta.
A perda de uma vida humana é lesiva enquanto empobre-cedora do colectivo humano e, assim, qualquer morte faz descer a tristeza. Perdemos alguém e reflectimos mais a morte, incontornável no ser de tempo que somos. É a morte que inscreve a palavra destino na vida. Mas, se o poema invadiu o meu coração, foi por uma dor mais funda, não apenas a que se experimenta pelo homem anónimo, parceiro de todos nós, mas a dor da perda de alguém com quem partilhámos amizade e companheirismo em momentos bons e maus, já que os amigos têm o dom da presença contínua.
O inesperado acrescenta gestos indecisos, um pouco tontos pelo abalo e pela projecção de um corte irreversível e questionado pela primeira notícia, perguntando da impossibilidade à espera da negação de um facto. A morte de um amigo rouba sempre um pedaço da nossa própria identidade.
Manuel Ribeiro Toscano soube ser o homem que parte dos homens para chegar a Deus, em que tão fundamente acreditava. A bondade de uma vida abre-se sempre para o outro, dinamicamente, tornando-se um exemplo de presença num estar de amor ao próximo. A atenção aos que o rodeavam e ao mundo, a solidariedade, a probidade inscreveram-se num compromisso assumido. Poderia gravar-se num epitáfio: foi amado, porque amou.
Conheci o Toscano, no final da década de 70, como professor dedicado, exigente de si, por isso exigindo aos seus alunos. Não vou recordar tudo o que sei, e que os jornais já resumiram, da sua acção, apesar de crer que não são os dados de um currículo que resumem uma vida. A nossa amizade manteve-se ao longo de anos, construída como pedra a pedra de uma casa, forte para além de opiniões diferentes, por isso verdadeira no sentimento e no apreço mútuo. Gostávamos de conversar, discutir, gracejar… Os nossos encontros impregnavam-se do agradável calor dos convívios pacíficos, sempre encontros de matar uma saudade e de retomar conversa. Não pude estar no último encontro físico, quando a terra o cobriu. Esteve o meu pensamento contínuo, imbuído de tristeza, numa presença longe que é sempre perto para os amigos.
A vida que se aprende é a que nos ensina a perda, que nos defronta com o espelho onde se reflecte a efemeridade. As palavras apenas querem fazer o curativo das marcas que se transformam em cicatrizes, sempre a lembrar a vivência, o sentimento e a parte de nós que vai ficando pelo caminho. Recorro a um outro poema de António Salvado, do livro já citado, que se intitula «Cicatriz»: «De tudo o que se vê, / de tudo o que se diz, // de tudo o que se faz / ou não se faz - // a cicatriz: // sinal / de permanência.»
Do coração das saudades vai emergir o sorriso da recordação, o sulco indelével de um amigo na minha vida, o traço de um homem que se respeita. Por entre as lágrimas cintilará o brilho estelar que permite que a palavra aflita suavize na doçura de uma lembrança viva para sempre.
Para ti, Amigo, assino: Milola.