17 dezembro 2014

Maria de Lurdes Gouveia Barata
ESCREVER SOBRE O NATAL

Escrever sobre o Natal arrasta signos repetidos, mas que se querem repetir, seja por palavras da época tornadas habituais, seja porque é tradição de consciência em desabafo do peso das negruras de despojados e das nuvens de guerra que perturbam a luz. Não se sentindo o Natal no coração, tudo se torna estribilho automático como quando se rezam orações somente papagueadas. E o Natal carrega-se de luzes exteriores e cores que explodem nas montras a chamar alarido de compradores.
Não obstante, vem o encantamento, a magia com música de anjos, as estrelas nas árvores e nas janelas a chamar cintilações siderais, num cântico ao Menino com o sortilégio de salvação dos homens. O saco do Pai Natal vem cheio de presentes, vem de trenó com a beleza de ser puxado por renas, mas traz dependuradas do grande saco vermelho as lembranças do Menino Jesus com braçadas de prendas, a descer pela chaminé lambida de chamas que também aqueciam os sapatinhos (tem de ser diminutivo…) da criança que fomos numa outra geração. Vem-me à lembrança a história do meu irmão pequenino, contada entre risadas, que encontrou de manhã o sapatinho cheio, a abarrotar de brinquedos e guloseimas, a espantar-se da considerada abundância e a fazer uma promessa: «Eh, tanta coisa! Para o ano ponho a bota do avô!». Veio depois o Pai Natal, mas um Pai Natal que para mim existiu sempre junto do Menino Jesus, cumprindo ordens, porque era esse Menino o todo-poderoso. Todavia, a árvore de Natal entrou dentro das casas, enchendo-as de luzes que piscam ininterruptas e apelativas.
Uma outra memória me inunda agora o coração. O meu hall de entrada é o altar da decoração natalícia. Tinha por hábito ligar por uma fita prateada a estrela da árvore ao tecto e a mesma fita prateada descia da estrela ao chão. Era o elo céu-terra de reminiscências da infância. Os miúdos começaram por puxar a fita e a árvore abanava e eu antevia o risco daquela obra por terra. E ralhei, como intermediária de uma ameaça temível: «Está bem! Puxem a fita que está ligada ao tecto para o Menino Jesus poder descer com os presentes. A fita cai e ele não pode descer e deixar as prendas…». A miúda, com os cerca de dois anos mais atrevidos e inconscientes, fazia novas tentativas. O miúdo com os cerca de quatro anos mais conscientes, passou a ser o guardião daquele raio prateado que se ligava ao céu, puxando a irmã, ameaçando, chamando-me quando achava que não dava conta do recado sozinho… E lá foi convencendo a irmã, que olhava, mas já não puxava a fita… Ainda hoje me encanto com a árvore branca, já encardida e careca, que envelheceu desde então e decoro sempre a pendurar-me em memórias. Por vezes, coloco-lhe pendentes velhinhos que os miúdos fabricaram em tempo de escola…
O fascínio mágico do Natal enchia a minha infância do estremecimento de viver num reino de Aladino e de fadas (ainda hoje gosto de contos de fadas) que se consubstanciavam no Menino Jesus, que seria o equivalente de heróis mais recentes como o super-homem ou o homem-aranha, entre outros. Um dia, ouvi vozes ciciadas dos meus pais (custava-me a dormir na noite que ia acabar na madrugada do sapatinho cheio de prendas…) e pareceu-me que estavam a encher os sapatinhos… Neguei-me a acreditar. E convenci-me a mim própria que era uma confusão, porque o Menino Jesus vinha de certeza… Também uma das minhas sobrinhas armou um pé de vento no infantário, em Lisboa, quando uma educadora pouco sensível teimou, estupidamente, que eram os pais que colocavam as prendas: «É mentira! Eu vi o Pai Natal na casa da minha tia em Castelo Branco!» e teimava e teimava muito zangada. O Pai Natal era eu (disfarçadíssima) que entrava e o beijo que pedia (depois de avisar que já tinha descarregado os presentes) era dado por uma pequenita tremendo de emoção…
A noite fria do Natal! A noite do menino tão belo que logo veio nascer na noite do caramelo. Vejo as minhas mãos pequeninas a arrancar esses vidrinhos de caramelo que brilhavam entre as pedras das ruas de Monsanto. Mãos engadanhadas, a minha avó a ralhar, mãos que elevavam o caramelo até aos olhos para através dele ver a beleza do mundo.
O frio do Natal sente-se agora mais na alma, que absorve este mundo globalizado, informado sobre os mínimos pormenores, doendo mais pela consciência da desigualdade entre os homens, pelo aumento dos homens de Má Vontade, que se desunham por essa desigualdade, pelas catástrofes da própria Natureza que dá resposta aos actos humanos que a destroem. Frialdade do Natal que em terra portuguesa trouxe cada vez mais gente à procura duma sopa em instituições sociais para servir de consoada. Para onde foi o Menino Jesus? Provavelmente também emigrou…

16/12/2014
 

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