13 agosto 2014

Antonieta Garcia
Verão, festas e gula...

Julho e agosto são meses de festa sadia, na Beira Interior. Nas aldeias, há motivos para celebração, desvanecem-se penas; os fins de semana vestem-se de gala para regalar a alma e o prosaico estômago. Grosas de festivais gastronómicos – do pão à cereja, à cherovia, batata, azeite, melancia, pastel de molho, sopas, queijos… - fazem jus à boa mesa beirã. Muito boa e muito igual: a arte está no batismo dos pratos. As farófias podem ser colchão de noiva, as papas, de carolo viram milharadas… etc., etc. As confrarias cresceram em torno de sabores regionais, houve aperfeiçoamentos e até toques gourmet aqui e além. Na verdade, durante as férias de verão, com o regresso de emigrantes, não há boca que resista aos múltiplos prazeres de uma comezaina à portuguesa. Iguarias não faltam e os comensais agradecem a verdade dos sabores. Sagram-se o arroz doce, o leite-creme, os almendrados, borrachões, as tigeladas e doces conventuais tão pouco católicos como a barriga de freira, papos de anjo, toucinho-do-céu, jesuítas... Nas tardes sem fim do verão, somam-se as árvores a oferecerem prodigamente fruta que se mordisca com prazer bíblico, pecador… o mosaico de figuras fraternas, a alargar-se…
Neste universo, as transgressões alimentares agigantam-se, está bem de ver. Colesterol? Perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe e a gula ganha adeptos em muitos tabuleiros. Certo é que a boa comida alegra o pensamento, enriquece o convívio. De barriga vazia ou maltratada não se espere bem-estar. Moderação? A partir de que critérios? Se o petisco não atrai, não custa ser moderado; mas se os reflexos de Pavlov atuam desmesuradamente, como calar o gozo de um bom prato, em boa companhia?!
Em todo o lado, em julho e agosto servem-se sardinhas, febras, entremeada, enchidos, frango, tudo com pó… ingeridos à tripa forra, mesmo que o estômago rabeie, se a idade não permite tais excessos. Este é o critério de peso para a temperança.
Todavia, se a gula é pecado, aceite-se que é muito complexo, etiquetar tal transgressão. Pecamos por pensamentos, palavras e obras, expressa o cânone… e João Ubaldo Ribeiro. Ora, as obras podem omitir-se, com maior ou menor esforço; basta ponderar a inclemência que as mais graves arrastam pelos cabelos e a maioria dos mortais resiste. Para as palavras há sempre a possibilidade de encontrar significados mais low profile e tornar os insultos e quejandos em ofensas que não ultrapassem o perdoável. Repreensíveis, embora, são humaníssimos e desculpáveis até sem penitência. Problema, problema é o pensamento. Como arreatá-lo? Barra-se e salta as grades, cerca-se e derruba muros, afasta-se, substitui-se… e, quando menos se espera, lá estão doidices e gulodices, em sentido, a aclamar os neurónios. Abranda-se a vigilância e os “pensamentos” voam para sítios indizíveis. Felizmente não têm voz, caso contrário seria o bom e o bonito. Ofensas mentais, paixões que se ocultam, malfeitorias teóricas inverbalizáveis, invejas… e tantas, tantas coisas… (exato: como essa em que está a pensar!) davam cabo da vida a muito mortal. Ora, a gula acumula: intromete-se como palavra, pensamento e conclui-se como obra.
Ai, mas o que seria o verão nas aldeias da Beira Interior sem a presença mais que perfeita da gastronomia? Sem as conversas e a celebração do afeto? Pelo paladar e palavras se regressa ao torrão-natal, se mete a colherada num mundo que vai mudando e cujos caminhos se reaprendem e recriam anualmente, o tempo a enrugar, a febre dos mal-amados a grassar, a alongar-se...
São alguns dias que o tempo devora depressa demais. Com a saudade à arreata, diferentes gentes cruzam-se na Beira e entremeiam estórias e história arquitetando o seu espaço com alma. O abraço de narrativas de infância, em linguagens que incluem o folclore, desperta um sentido real: que ricos somos!
Fonte de segurança a terra natal, com as feiras, festas e romarias, com a euforia, reconstrói, no verão, a imagem de uma convivialidade antiga que a memória alindou. E se os territórios mudaram, na Beira, agora, é o paraíso. Inscrições familiares, geográficas, culinárias, religiosas recriam no Interior do País, a mátria de vagamundos em busca de um céu vestido de sol...

14/08/2014
 

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