Guilherme Oliveira Martins
RECORDAR ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA
«Documentos Políticos» da autoria de António Alçada Baptista (Morais, 1970) é um precioso conjunto de textos sobre a participação política do escritor como candidato da oposição por Castelo Branco às eleições anteriores a 1974. «Não estamos numa sociedade democrática (diz-nos ele), mas não podemos honestamente desconhecer que em Portugal, foram e são agora possíveis, por iniciativa do próprio governo atividades e situações que não são possíveis nos países totalitários». O autor fala de uma «sociedade semi-complacente». A importância da vida e obra de António Alçada Baptista tem a ver com o seu contributo na transição democrática portuguesa. Recorde-se que, em 1945, com o fim da guerra, houve quem pensasse que os aliados iriam pressionar os países ibéricos no sentido da democracia. No entanto, as feridas abertas pela guerra civil espanhola e o desenvolvimento da guerra fria suscitaram na Aliança Atlântica receios, que se traduziram na manutenção do status quo. A «neutralidade colaborante» portuguesa do final do conflito mundial, com as ambiguidades, serviu para legitimar a continuidade de Salazar. As esperanças alimentadas em 1945 foram diversificadas – desde os republicanos moderados até ao Partido Comunista, passando pela pequena oposição monárquica, que julgou ver uma possibilidade de mudança de regime (contando com a velha ambiguidade do Presidente do Conselho). Tudo ficou na mesma, apesar de alguns equívocos terminológicos, que levariam Salazar a falar de «democracia orgânica» e de «eleições livres como na livre Inglaterra». Alguns católicos (como Francisco Veloso, o Padre Joaquim Alves Correia, Sebastião José de Carvalho e José Vieira da Luz) optaram por alinhar no MUD (Movimento de Unidade Democrática). As limitações do momento levaram, porém, esses católicos inconformistas a optar sobretudo pela intervenção social (como aconteceu com o antigo deputado da União Nacional, ativista da Ação Católica Operária – o Padre Abel Varzim). O caso do Centro Nacional de Cultura (criado em 1945) é um exemplo que merece referência. Nascido por iniciativa de jovens monárquicos, que queriam aproveitar as ambiguidades sobre a natureza futura do regime, foi, a pouco e pouco, evoluindo com uma crescente influência quer de intelectuais da chamada «filosofia portuguesa» (como Afonso Botelho) quer de católicos críticos, que antecipavam a tendência de abertura que viria a concretizar-se no Concílio Vaticano II. Entre 1945 e 1958, sente-se uma evolução no sentido de integrar progressivamente os católicos numa transição centrada na abertura gradual do sistema constitucional. Na oposição republicana havia contradições significativas, que o tempo agravaria, em especial no domínio da política ultramarina. Afinal, a República fora criada na sequência do Ultimatum inglês e a memória desse ultraje estava presente na abordagem do tema colonial. O Partido Comunista beneficiava da guerra fria e tendia a ser a força mais significativa da oposição. Entretanto, a posição da Igreja relativamente à autodeterminação dos povos colonizados evoluía na linha do que Mounier dissera em «L’Éveil de l’Afrique Noire». Rompe-se a «frente nacional» que sustenta o Estado Novo, em que as Forças Armadas e a Igreja desempenhavam um papel essencial. Esses apoios irão ser postos em causa, definitivamente, sem reversão. Referimo-nos à candidatura à Presidência da República do General Humberto Delgado e ao memorando enviado pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes a Salazar. Henrique Galvão e António Sérgio, duas personalidades provindas de horizontes antagónicos (um, do grupo de militares que implantou a ditadura em 1926, braço direito de Salazar na Emissora Nacional; e outro, prestigiado intelectual ligado à «Seara Nova»), encontram-se na oposição ao Estado Novo, convergindo na ideia de que este apenas poderia ser derrubado se os seus apoios fossem atingidos, a partir de dentro. Daí a candidatura de Delgado (antigo comandante da Legião), que o PCP não apoiou num primeiro momento, mas que tomaria uma dinâmica imparável, obrigando os comunistas e mudar de atitude, e a desistirem do candidato Arlindo Vicente. No caso da Igreja Católica, a atitude do regime face a D. António Ferreira Gomes, impedindo este de regressar ao Porto (apesar de continuar a ter a dignidade episcopal), torná-lo-á herói e vítima e um dos símbolos do «aggiornamento» do Concílio Vaticano II, era posto em causa o eurocentrismo e assumia-se a compreensão dos «sinais dos tempos» (que a encíclica «Pacem in Terris» e a constituição «Gaudium et Spes» enfatizam).
António Alçada Baptista lançou o projeto renovador da Livraria Moraes. Tratou-se de criar um movimento de opinião centrado em leigos (com apoio de alguns clérigos), capaz de seguir e concretizar o programa de Emmanuel Mounier, de unir católicos e não católicos no combate contra a «desordem estabelecida», que o mesmo seria dizer, romper com a cumplicidade da Igreja Católica em relação a Salazar. Ao contrário do que muitas vezes se pretende, a ideia fundamental de António Alçada Baptista não foi a criação de um Partido Democrata-Cristão. Basta ler-se atentamente os textos publicados nas coleções «O Tempo e o Modo» e «Círculo do Humanismo Cristão», – o que altera totalmente a ideia de que AAB viu derrotado o seu projeto político. O que este desejava era encontrar uma convergência de movimentos e opiniões que permitisse uma transição pacífica de contornos abertos e cosmopolitas, segundo a lógica das democracias ocidentais. A ligação ao Congresso para a Liberdade da Cultura é um sinal dessa orientação. Trata-se de tornar ativo, em Portugal, um grupo de intelectuais sem vocação partidária. Do mesmo modo, a ideia, não concretizada de «O Pacto», influenciada pela comunidade de Mounier nos arredores de Paris, nada teve a ver com um movimento político. É certo que, aquando da fundação de «O Tempo e o Modo», Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio participam, o futuro fundador do Partido Socialista pretendia que AAB fosse a personalidade aglutinadora de uma corrente política democrata-cristã – no entanto esse entendimento deparava com a oposição de António Alçada Baptista e da maioria dos seus companheiros (para quem não deveria haver uma política cristã, mas cristãos livres, sem lógica confessional, na política).