Maria de Lurdes Gouveia Barata
VIDA E MORTE
O recomeço traz sempre um lenitivo de crença de que tudo vai ser melhor. Setembro entrou e trouxe essa disposição especial de esperar uma mudança de preocupações ou vivências problemáticas, realizando o que muito se deseja. Na nossa vida vivemos muitos Setembros de regresso à vida escolar, na infância e na adolescência, com saudade mitigada no encontro com colegas e amigos. Setembro liga- -se também a despedida de uma época mais relaxante de férias e de afastamento do lugar vivido durante o ano, proporcionando evasão de rotinas. É um intervalo de mudança que se transforma em recreio. Setembro abriu-se numa perspectiva de desaparecimento das ondas de calor (este ano quase me fizeram negar o meu gosto pelo Verão!), de poder anular a ansiedade dos incêndios. Ora no terceiro dia deste Setembro de esperança logo aconteceu a tragédia do elevador da Glória em Lisboa com a presença da morte. Dezasseis mortos, cinco portugueses, os outros sendo turistas a gozar férias, até havia um casal que estava no seu último dia antes da partida para o país de origem, foi mesmo o último dia, mas era o das suas vidas. De repente. Vem-me imediatamente à memória um poema de Vinicius de Moraes, que sempre me fez estremecer de emoção (penso que já lhe fiz referência numa outra crónica, não tenho a certeza, por isso peço desculpa aos que me lêem, se assim for). Volto, porém, a Vinicius:
SONETO DA SEPARAÇÃO
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
A emoção do poema tem como trave de suporte a própria realidade, uma vez que a morte é afastamento e separação definitiva, pelo menos no aspecto físico. Vai bem fundo o de repente, a que se liga o espanto, que uma dicotomia antagónica sustém: riso / pranto; calma / vento; momento imóvel / drama; amante / triste; contente / sozinho; próximo / distante. Há uma designação da vida que vem reforçar a dicotomia: aventura errante, conduzindo a ideia do inesperado no destino humano. De repente, o que era deixa de ser por um brutal salto de morte como separação inalienável. Sem prolongar o tema, cito no entanto Vergílio Ferreira (Escrever): «De vez em quando a eternidade sai do teu interior e a contingência substitui-a com o seu pânico. São os amigos e conhecidos que vão desaparecendo e deixam um vazio irrespirável. Não é a sua ‘falta’ que falta, é o desmentido de que tu não morres». Veio tudo isto numa associação à tragédia do elevador da Glória e de considerarmos que poderíamos estar no lugar desses outros. Cada ser humano é parte integrante de toda a humanidade. Sonhar com recomeço transforma-se nestes dias de Setembro em continuidade. Não refiro apenas os ciclos da Natureza, mas volto à continuidade das guerras que se prolongam em morte quotidiana em Gaza, em morte quotidiana na Ucrânia - as duas principais referências que também no quotidiano nos entram em imagens pela casa dentro. Fernando Assis Pacheco fala assim da morte no poema «As Balas» (A Musa Irregular): «São de ferro. Ou de aço? / Diz-se que fazem à entrada / um pequeno orifício, / seguido de uma grande / devastação de carnes / sangrentas. Por isso matam. / (…)». Hoje ainda existem as balas, todavia infligir a morte aperfeiçoou métodos a utilizar pela esquelética Senhora da Foice, como o uso de mísseis de longo alcance de vários tipos e de drones Kamikazes agressivos que a evolução da ciência conseguiu. E já temos a Inteligência Artificial ao serviço da guerra. Continuando com poetas, eis as três primeiras estâncias (de seis) de Mário Dionísio:
Alguém morre
enquanto acendo o meu cachimbo
adoço o meu café olho quem passa
Alguém que nunca vi nem sei onde viveu
e no entanto anónimo embaraça
a paz com que o ponteiro isócrono percorre
e traça as nossas margens
Amigo ou inimigo irmão no tempo
de mim mesmo algo leva e o despedaça
(…)
A participação de cada um está em não se entregar à indiferença. Acrescento palavras de Bernard Shaw: «O maior pecado para com os nossos semelhantes, não é odiá-los, mas sim tratá-los com indiferença; é a essência da desumanidade». Acrescenta-se à desumanidade da morte que seres humanos determinam para outros seres humanos. De Mário-Henrique Leiria (Obras Completas II – Poesia) faço excertos do longo poema «visão sangrenta):
Como a selvagem águia
Gotejando sangue,
Mergulha,
Célere,
Sobre a presa,
Assim como tu, homem
Assassino de ti mesmo,
Te destróis
Em luta sempre acesa
Mão avermelhada,
Descarnada,
Levanta o véu.
(…)
Esmaga teu irmão
P’ra quê poupá-lo?
Esmagar não chega
Fá-lo em pedaços
Lentamente,
Muito lentamente
Dá-o à Sombra Negra.
(…)
Destrói-te.
És o teu carrasco.
Ainda assim, Setembro insiste em falar da vida. E é na insistência da vida que a esperança não morre.