Guilherme D'Oliveira Martins
«UM DEMÓNIO CRÍTICO E IRÓNICO»
2015 em Portugal que poderá significar em termos culturais? Se há juízo do ano difícil de fazer é esse mesmo, uma vez que se trata, no essencial, de pensarmos na resposta criadora aos desafios que se põem aos portugueses. E o certo é que quando hoje se fala de economia da cultura – não estamos a falar de algo que se encontre nas margens da sociedade, mas daquilo que está no centro das políticas públicas. Trata-se do reconhecimento da importância do que tem valor e da capacidade criadora da economia e da sociedade. O melhor investimento não significa pôr dinheiro em cima dos problemas, mas entender que o que tem mais valor é o que não tem preço. Daí a necessidade de considerar o tempo, ou seja, o médio e o longo prazo. A inovação e a criatividade exigem, assim, correr riscos, o que também obriga a definir objetivos (lembramo-nos de Kennedy a definir a chegada do homem à lua), a planear com rigor o caminho a trilhar (Roosevelt assentou o «New Deal» nesse método) e a avaliar com cuidado os meios e os fins aplicados. O nosso Infante D. Henrique e D. João II são dois exemplos desse bom modo de agir. De facto, a qualidade e os valores são matérias-primas da vida, enquanto a especulação e o endividamento do consumo geram a decadência e o atraso.
Falar de cultura em tempos de crise não pode, pois, significar uma fuga à realidade. Estamos no centro das preocupações fundamentais que devem estar na ordem do dia da cidadania ativa. É a reflexão sobre a democracia que tem de estar em causa – num tempo em que a «legitimidade do exercício» se tornou mais importante do que nunca. É preciso encontrarmos caminhos para que a confiança e a coesão social, a verdade e a justiça sejam realidades sentidas pelas pessoas. De que estamos a falar? Antes do mais, de um triângulo envolvendo Educação, Ciência e Cultura. A ligação entre as três realidades é fundamental. A cultura, a ciência e a educação, numa palavra, a civilização, para serem fatores de avanço, devem ser incentivados. Sem valorizar a aprendizagem e a capacidade de transformar a informação em conhecimento, sem a disciplina das ideias claras e distintas, sem o trabalho e a exigência, não combateremos a mediocridade. Esta é uma questão de sobrevivência, pelo que somos chamados à criatividade e à inteligência. O sentido crítico, a investigação e a experiência, a cooperação científica, a avaliação, a relevância e a comparação internacional são o caminho adequado contra a irrelevância. Sem a ligação entre as Humanidades e a investigação científica, sem o diálogo entre as artes e o conhecimento, sem a defesa do património histórico (material e imaterial), sem atenção à contemporaneidade, não haverá desenvolvimento humano digno desse nome.
Não se caia, pois, na tremenda armadilha do «fatalismo do atraso» ou da condenação de tudo o que se fez. Sempre que nos acomodámos decaímos. Se avançámos na educação e formação temos de prosseguir, percebendo que nunca haverá conhecimentos a mais. Nos últimos quarenta anos, progredimos bastante – mas importa continuar, com exigência redobrada, já que o mundo não esteve à nossa espera. Precisamos de pôr os olhos no que de melhor se faz noutros países – apostando na colaboração e no intercâmbio, com aproveitamento dos nossos jovens que partem, e que serão auxiliares preciosos para uma internacionalização de qualidade. A nossa inserção na União Europeia deverá, por isso, ser proactiva e não meramente defensiva. Daí que as saídas económicas, o rigor financeiro público, o governo económico europeu e o desenvolvimento sustentável com justiça distributiva obriguem a valorizar a qualidade da democracia e a criação cultural. E temos de insistir na importância das Humanidades, não fechadas nos salões, mas capazes de compreender os caminhos novos do pensamento e da ciência.
A cultura não se confunde com jogos florais. Obriga a pôr a cidadania e a dignidade humana em lugar primeiro, e a garantir que o poder político legítimo e democrático prevaleça sobre os interesses económicos. Precisamos de apostar na qualidade com justiça, por isso Bobbio falava-nos da liberdade igual e da igualdade livre. Como disse Eduardo Lourenço: «a cultura – mesmo a mais excitante – não é um fim em si mesma. Precisamos de um demónio crítico e irónico para nos ajudar a viver com menos delírio e euforia…» («A Nau de Ícaro», 1999). Ao entrarmos na comemoração dos setenta anos de vida, o Centro Nacional de Cultura (CNC) tem procurado ser fiel ao espírito dos seus principais artífices: Sophia e Francisco Sousa Tavares, Gonçalo Ribeiro Telles, António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, Helena e Alberto Vaz da Silva, José-Augusto França. Importa compreender o que um dia disse Vasco Graça Moura sobre o facto de o CNC fazer duravelmente o que tantas vezes o Estado não consegue. Lembremo-nos da Convenção do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural, da experiência pioneira das rotas culturais, do reconhecimento do património imaterial pela UNESCO, do projeto «Poems from the Portuguese», do «Disquiet» (com jovens escritores americanos a virem até nós), dos «Portugueses ao Encontro da sua História» (de que «Na Senda de Fernão Mendes», Gradiva, 2014, é uma memória breve)… Isto, sem falar da importância do teatro de Fernando Amado e Almada Negreiros, da Casa da Comédia, de António José Saraiva, de Eduardo Lourenço, da tradição de «O Tempo e o Modo» e de «Raiz e Utopia»… De que falamos, afinal, para 2015? De exigência, trabalho, determinação e vontade. Sem isso, nada feito… Em tempo de crise, falar de cultura, de ensinar e aprender e da investigação científica, a sério, é procurar, no fundo, caminhos de renascença…