15 julho 2015

Maria de Lurdes Gouveia Barata
O TEMPO GUARDADO NO INTERIOR DA PÁGINA, ÚLTIMO LIVRO DE ANTÓNIO SALVADO

Foi apresentado no dia 27 de Junho o último livro de António Salvado, No Interior da Página seguido de Prosas Avulsas do Interregno. Proponho-me algumas notas de leitura.
O interior da página preserva uma companheira para desabafo e lenitivo de solidão em cada hora sorvida em dias de perda física numa circunstância de doença com o sofrimento inerente. O soneto «Prefácio» (fundador dos 107 sonetos que integram a primeira parte do livro) anuncia o livre acesso a um recôndito íntimo apenas manifestado na escrita. Abre a porta para um dizer em notas de diário, subtítulo que se torna prognóstico dum certo enquadramento de leitura.
O produto de uma criação ficou na página que se encheu com o recorte dos dias de um ser de tempo (como é cada homem) no tempo escoado tristemente em momentos de debilidade, na queda de um frágil corpo palmilhando a vida (p.11). É um tempo real que se enche de um tempo psicológico que arrasta muitos fragmentos do tempo já vivido, evocadores do passado que, antes de ser passado, foi presente de fogo pelas cores acesas de um tesouro perdido, visualizado quase fóssil  (p.9) devido à perda irremediável num pouco a pouco (p.12), inscrevendo o tempo que já foi um cântico de júbilo (p.27), acompanhante da vinda do sol, na altura de vivência exuberante, a que o presente desanimado empresta brilho de paraíso perdido. Como diz em Prosas Avulsas do Interregno («Algumas Asserções com Dúvidas», p.143): «Num tronco meio queimado se descobrem, por vezes e correndo, fluidos de seiva e, mais em baixo, a certeza de uma raiz, de múltiplos segmentos, que continua a prendê-lo à terra».
Vêm as árvores, as flores, as estações com relevo para a explosão da Primavera, o amor, a música, elementos sempre reiterados na obra de António Salvado, elementos que se engastam nestes sonetos em que freme o passado, oposto ao presente. Nas Prosas, que constituem a segunda parte do livro, diz num errante desafogo (p.141, «Na Ausência de um Diário Alguns Errantes Desafogos»): «Um sono, ainda que leve, que me traga mudamente o olor agradável e cicioso das rosas, mesmo que efémero, do passado».  É esse passado que ainda se torna o esteio da capacidade de sonhar, porque houve sonhos (p.13), que apenas soçobram na hesitante palavra (p.46) – a Vida estremece então ao lado da página que se enche de criação poética, numa indivisibilidade vida/escrita.
A Noite é companheira da página, traz a insónia e a lembrança, transforma-se na carícia das estrelas a fulgirem (p.24), é designada de seiva de conforto (p.24) e polariza também o tempo da criação, ou não fosse a noite ligada a um tempo de germinações e a um desabrochamento para o dia, a vida continuada, a luz. «Na caverna do tempo» é soneto (p.63) que reforça o elo de trevas (como as da noite) e renascimento para o dia – e voltamos à gestação, recuperando a caverna como arquétipo do útero materno. Caverna e trevas agem como convulsão (cf. 1ª quadra) antes de um acto de criar. O poeta liga trevas a «erradas páginas sem tinta», «alvas», ainda sem nada escrito, numa antítese que reforça trevas/luz, o antes e o depois de criar. O último terceto instala uma interrogação: «para que destruir eu não consiga / os momentos d’ angústia e consumi-los / enquanto o preso tempo não zarpar?». Há um tempo preso, que é um fio que ainda prende à vida, e há um tempo preso antes de criar e criar tem a potencialidade de destruir os momentos de angústia e consumi-los, consumindo embora o próprio tempo. Funcionam por ordem inversa tempo e vida, registando-se no poema »Interregno sem marcas» (p.52): «Sem conserto, os ponteiros do relógio / remarcam, oscilando, horas e horas / e alongam-se encurtando a minha vida.»
Neste presente, a que chamei anteriormente desanimado, torna-se consolo a criação poética, a noite que vai abrir para a luz, a invocação do divino (Deus, Nossa Senhora) num pedido de consolo, o passado que se afigura luminoso. Na escrita reside o outro, quando se faz um legado numa dimensão de partilha fraterna: «Desprendidos de mim, ide, meus versos» (último soneto, p. 114).
É com prazer que deixamos vir estes versos até nós.

15/07/2015
 

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